A física da Estoá antiga

A física da Estoá antiga é uma forma (talvez a primeira forma) de materialismo monista e panteísta.

a) O ser, dizem os estóicos, é só aquilo que tem a capacidade de agir e sofrer. Mas este é apenas o corpo: “ser e corpo são idênticos” é, portanto, a sua conclusão. Corpóreos são também as virtudes e corpóreos os vícios, o bem e a verdade.

b) Esse materialismo, embora tome a forma do mecanicismo pluralista atomista, como nos epicuristas, configura-se, num sentido hilemórfico, como hilozoísta e monista.

Os estóicos falam, na verdade, de dois princípios do universo, um “passivo” e um “ativo”, mas identificam o primeiro com a matéria e o segundo com a forma (ou melhor, com o princípio enformante) e sustentam que um é inseparável do outro. A forma, além disso, segundo eles, é a Razão divina, o Logos, Deus. Eis dois significativos testemunhos antigos: “Segundo os estóicos, os prin­cípios do universo são dois, o ativo e o passivo. O princípio passivo é a substância sem qualidade, a matéria; o princípio ativo é a razão na matéria, isto é, Deus. E Deus, que é eterno, é demiurgo criador de todas as coisas no processo da matéria”; “Os discípulos de Zenão concordam em sustentar que Deus penetra em toda a realidade e que ora é inteligência, ora alma, ora natureza [...].”

Compreende-se bem, deste modo, que os estóicos pudessem identificar o seu Deus-physis-logos com o “fogo artífice”, com o heraclídeo “raio que tudo governa” ou ainda com o pneuma, que é “sopro ardente”, ou seja, ar dotado de calor. O fogo, com efeito, é o princípio, que tudo transforma e tudo penetra; o calor é o princípio sine qua non (imprescindível) de todo nascimento, crescimento e, em geral, de toda forma de vida.

Para o estoicismo a penetração de Deus (que é corpóreo) através da matéria e de toda a realidade (que também é corpórea) é possível em virtude do dogma da “mescla total dos corpos”. Recusando a teoria dos átomos dos epicuristas, os estóicos admi­tem a divisibilidade dos corpos ao infinito e, assim, a possibilidade de que as partes dos corpos possam unir-se intimamente entre si, de modo que dois corpos possam, perfeitamente, fundir-se num só. E evidente que essa tese comporta a afirmação da “penetrabilidade dos corpos”, aliás coincide com ela. Por mais aporética que seja, essa tese, em todo caso, é requerida pela forma de materialismo monista adotado pela Estoá.

O monismo da Estoá pode ser compreendido ainda melhor se considerarmos a doutrina das assim chamadas “razões seminais”. O mundo e as coisas do mundo nascem da única matéria-substrato qualificado, através do logos imanente que, em si, é uno, mas capaz de diferenciar-se nas infinitas coisas. O logos é como o sêmem de todas as coisas, é como um sêmem que contém muitos sêmens (os logoi spermatokói), que os latinos traduziriam com a expressão rationes seminales (razões seminais). Uma fonte antiga diz: “Os estóicos afirmam que Deus é inteligente, fogo artífice, que meto­dicamente procede à geração do cosmo e que inclui em si todas as razões seminais, segundo as quais as coisas são geradas segundo o fado. Deus é [...] a razão seminal do cosmo.”

As Idéias ou Formas platônicas e as formas aristotélicas são assim assumidas no único Logos, que se manifesta em infinitos sêmens criativos, forças ou potências germinativas que operam no interior da matéria, imanentes à estrutura da matéria a ponto de serem inteiramente inseparáveis dela. O universo inteiro é assim como que um único grande organismo, no qual o todo e as partes se harmonizam e “simpatizam”, ou seja, sentem em correspon­dência uma com a outra e em correspondência com o todo (doutrina da “simpatia” universal).

c) Dado que o princípio ativo, que é Deus, é inseparável da matéria e como não existe matéria sem forma, Deus está em tudo e Deus é tudo. Deus coincide com o cosmos. Dizem as fontes antigas: “Zenão indica o cosmos inteiro e o céu como substância de Deus.” Ou ainda: “Chamam de Deus o cosmo inteiro e as suas partes”. O ser de Deus é Tino com o ser do mundo, a ponto de tudo (o mundo e as suas partes) ser Deus. Essa é a primeira concepção explícita e temática da Antigüidade (a dos pré-socráticos era somente uma forma de panteísmo implícito e inconsciente; só depois da distinção dos planos da realidade em Platão e da negação crítica desta distinção é que se torna possível um panteísmo consciente de si mesmo).

Com base no que foi aqui precisado, é possível compreender plenamente a curiosa posição que os estóicos assumiram em relação ao “incorpóreo”. A redução do ser ao corpo comporta, como conseqüência necessária, a redução do in-corpóreo (daquilo que é privado de corpo) a algo que é privado de ser. O incorpóreo, faltando-lhe exatamente a corporeidade, carece das conotações que são distintivas do ser, ou seja, não pode agir nem sofrer. Assim, os estóicos, além dos conceitos universais, consideram “incorpó­reos” também o ‘lugar”, o “tempo” e o “infinito”, exatamente porque são coisas incapazes de agir e sofrer (e, por acréscimo, as duas últimas são também infinitas).

Esta concepção do “incorpóreo” suscita numerosíssimas aporias, das quais, pelo menos em parte, os próprios estóicos tiveram consciência. De fato, espontaneamente surge a pergunta: se o “incorpóreo” não tem ser porque não é corpo, então é não-ser, é nada? Para fugir a +.al dificuldade, alguns estóicos foram obriga­dos a negar que o ser seja o gênero supremo e que seja atribuível a todas as coisas, bem como a afirmar que o gênero mais amplo de todos é o “algo”.

E claro que tal doutrina, subvertendo o próprio estatuto da ontologia clássica, devia fatalmente cair num cipoal de contradi­ções, o que explica a perplexidade dos próprios estóicos.

Naturalmente, nesse contexto perdia todo sentido o quadro aristotélico das categorias, que são as supremas “divisões” ou os supremos “gêneros” do ser. Os estóicos reduziram as categorias a duas categorias fundamentais, às quais acrescentaram outras duas que, contudo, estão num plano muito diferente. As duas categorias fundamentais são: a substância, entendida como subs­trato material, e a qualidade, entendida como qualidade que, em união inseparável com o substrato, determina a essência das coisas singulares. As outras duas categorias são constituídas pelos modos e pelos modos relativos. Mas os estóicos não se pronunciaram claramente sobre o estatuto ontológico destas duas últimas.

Contra o mecanicismo dos epicuristas, os estóicos defendem a ferro e fogo uma rigorosa concepção finalística. Com efeito, se todas as coisas sem exceção são produzidas pelo princípio divino imanente, que é Logos, inteligência e razão, tudo é rigorosa e pro­fundamente racional, tudo é como a razão quer que seja e, como ela não pode deixar de querer que seja, tudo é como deve ser e como é bom que seja; então, o conjunto de todas as coisas é perfeito; não existe obstáculo ontológico à obra do Artificie imanente, dado que a própria matéria é o veículo de Deus; assim, tudo o que existe tem um significado preciso e é feito do melhor dos modos possíveis; o todo, em si, é perfeito; as coisas singulares, embora sendo imper­feitas, consideradas em si mesmas, têm a sua perfeição no esboço do todo.

Estreitamente ligada a esta concepção encontra-se a noção de “Providência” (Pronoia). A Providência estóica, afirma-se, nada tem a ver com a Providência de um Deus pessoal. É o finalismo universal que faz com que cada coisa (mesmo a menor das coisas) seja feita como é bom e como é melhor que seja. É uma Providência imanente e não transcendente, que coincide com o Artífice imanente, com a Alma do mundo.

Desse modo, a Providência imanente dos Estóicos, vista por outra perspectiva, revela-se como “Fado” e como “Destino” (Heimarméne), ou seja, como inelutável Necessidade. Os estóicos entendiam esse Fado como a série irreversível das causas, como a “ordem natural e necessária de todas as coisa”, como a indissolúvel trama que liga todos os seres, como o logos segundo o qual as coisas acontecidas aconteceram: “aquelas que acontecem, acontecem; e aquelas que acontecerão, acontecerão.” E, posto que tudo depende do logos imanente, tudo é necessário (assim como tudo é providen­cial, do modo como vimos), mesmo o acontecimento mais insigni­ficante. Estamos diante de uma antípoda da visão epicurista, que, com a “declinação dos átomos”, ao contrário, havia colocado todas as coisas ao sabor do acaso e do fortuito.

Mas, no contexto desse fatalismo, como se salva a liberdade do homem? A verdadeira liberdade do sábio consiste em conformar a própria vontade à do Destino, consiste em querer, com o Fado, aquilo que o Fado quer. Isso é “liberdade”, enquanto aceitação racional do Fado, que é racionalidade: com efeito, o Destino é o Logos; por isso, querer os quereres do Destino é querer os quereres do Logos. Liberdade, pois, é pôr a vida em total sintonia com o Logos. Por isso Cleanto escrevia:

Guia-me, ó Júpiter, e tu, Destino, ao fim, qualquer que este seja, que vos praza assinalar-me. Seguirei imediatamente, pois se me atraso, por ser vil, mesmo assim deverei alcançar-vos.

Eis uma bela passagem, referida por fonte antiga, que exemplifica muito bem o conceito expresso acima: “Os estóicos também afirmaram com certeza que todas as coisas ocorrem por fado, servindo-se do seguinte exemplo: um cão que está amarrado a um carro, se quiser segui-lo é puxado e o segue, fazendo necessariamente aquilo que também faz por sua vontade; se, ao contrário, não quiser segui-lo, será obrigado, de toda forma, a fazê-lo. A mesma coisa na verdade ocorre com os homens. Mesmo se não quiserem seguir [o Destino], serão em todo caso obrigados a chegar ao que foi estabelecido pelo fado.” Sêneca o diria, traduzindo um verso de Cleanto com a sentença lapidar: “Ducunt volentem fata, nolentem trahunt” (“O destino conduz aquele que quer, quanto quem não quer”).

Mas há ainda um ponto essencial a ser ilustrado no que se refere à cosmologia dos estóicos. Como os pré-socráticos, os estóicos propuseram um mundo gerado e, em conseqüência, corruptível (aquilo que nasce deve, num certo momento, morrer). De resto, era a própria experiência que lhes dizia que, como existe um fogo que cria, existe também um fogo ou um aspecto do fogo que queima, incinera e destrói. No entanto, era impensável que as coisas singu­lares do mundo fossem sujeitas à corrupção mas não o mundo que é constituído por elas. Assim, a conclusão era obrigatória: o fogo alternadamente cria e destrói; em conseqüência, no fatídico final dos tempos haverá a “conflagração universal”, uma combustão geral do cosmos (ekpyrosis), que será ao mesmo tempo a purificação do universo, passando a haver somente fogo. A destruição do mundo se seguirá um “renascimento” (palingénesis), pelo qual “tudo renascerá de novo exatamente como antes” (apocatástase): então renascerá o cosmos, esse mesmo cosmos que continuará pela eternidade a ser destruído e depois reproduzido, não só na estrutura geral, mas também nos acontecimentos particulares (numa espécie de eterno retomo), e renascerá cada homem sobre a terra, cuja vida será como foi na sua vida anterior, até nas mínimas particulari­dades. De resto, idêntico é o Logos-fogo, idêntico é o sêmem, idênticas são as razões seminais, idênticas são as leis em sua explicação, idênticas são as concatenações das causas segundo as quais as razões seminais se desenvolvem em geral e em particular.

Como vimos, o homem ocupa uma posição predominante no âmbito do mundo. Esse privilégio, em última análise, deriva do fato de que, mais do que qualquer outro ser, o homem participa do Logos divino. Com efeito, o homem é constituído de corpo e alma, a qual é um fragmento da Alma Cósmica; é, pois, um fragmento de Deus, já que a Alma Universal, como sabemos, é Deus. Naturalmente, a alma é corpórea, ou seja, fogo ou pneuma.

A alma permeia o organismo físico interno, vivificando-o; o fato de este ser material não é impedimento para isso, já que, como sabemos, os estóicos admitem a penetrabilidade dos corpos. Exata­mente por permear todo o organismo humano e presidir às suas funções essenciais, a alma é dividida em oito partes pelos estóicos: uma, central, chamada “hegemônica”, isto é, a parte que dirige, coincidindo essencialmente com a razão; cinco partes constituindo os cinco sentidos; a parte que preside à formação; finalmente, a que preside à geração.

Além das oito “partes”, os estóicos distinguiram, numa mesma parte, diferentes “funções”: assim, a parte hegemônica ou parte principal da alma tem em si a capacidade de perceber, assentir, apetecer e raciocinar.

A alma sobrevive à morte do corpo, pelo menos por um certo período; segundo alguns estóicos, as almas dos sábios sobrevivem até a próxima conflagração.