A ética da Estoá antiga

A parte mais significativa e mais viva da filosofia do Pórtico, contudo, não é sua original e audaz física, mas sim a ética: com efeito, foi com a sua mensagem ética que os estóicos, durante meio milênio, souberam dizer aos homens uma palavra verdadeiramen­te eficaz, que foi sentida como particularmente iluminadora, acerca do sentido da vida. Para os estóicos, como para os epicuristas, o escopo do viver é a obtenção da felicidade. E a felicidade se persegue vivendo “segundo a natureza”.

Se observarmos o ser vivente, em geral constatamos que ele se caracteriza pela constante tendência de conservar a si mesmo, de “apropriar-se” do próprio ser e de tudo quanto é capaz de conservá-lo, de evitar aquilo que lhe é contrário e de “conciliar-se ” consigo mesmo e com as coisas que são conformes à própria essência. Essa característica fundamental dos seres é indicada pelos estóicos com o termo “oikeíosis” (= apropriação, atração = conciliatio). Da oikeíosis é que deve ser deduzido o princípio da ética.

Nas plantas e vegetais em geral, essa tendência é incons­ciente; nos animais, é consignada a um preciso instinto ou impulso primigênio; já no homem esse impulso é especificado e sujeito à intervenção da razão. Viver “conforme à natureza” significa, pois, viver realizando plenamente essa apropriação ou conciliação do próprio ser e daquilo que o conserva e ativa. Em particular, posto que o homem não é simplesmente ser vivente mas é ser racional, o viver segundo a natureza será um viver “conciliando-se” com o próprio ser racional, conservando-o e atualizando-o plenamente.

O fundamento da ética epicurista, desse modo, é marcado por tais conceitos de oikeíosis e do instinto originário: com efeito, considerados à sua luz, prazer e dor tomam-se novos parâmetros, não um prius (prioridade) mas um posterius (elemento secundá­rio), isto é, algo que vem depois e em conseqüência, quando a natureza já buscou e encontrou aquilo que a conserva e realiza. E, posto que o instinto de conservação e a tendência ao incremento do ser são primeiros e originários, então “bem” é aquilo que conserva e incrementa o nosso ser e, ao contrário, “mal” é aquilo que o danifica e o diminui. Ao primeiro instinto está pois estruturalmente ligada a tendência a avaliar no sentido de que todas as coisas são reguladas pelo instinto primeiro: à medida que se mostrem benévolas ou malévolas, as coisas serão consideradas “bem” ou “mal”. O bem é portanto vantajoso e útil; mal é o nocivo. Mas atenção: como os estóicos insistem em diferenciar o homem de todas as outras coisas, mostrando que ele está determinado não só pela sua natureza puramente animal, mas sobretudo pela natureza racional, isto é, pelo privilegiado manifestar-se do logos nele, então o princípio da valorização acima estabelecido assume duas diferentes valências, à medida que é referido à physis racional: uma é a que promove a conservação e o incremento da vida animal; outra é a que promove a conservação e incremento da vida da razão e do logos.

Pois bem, segundo os estóicos, o bem moral é exatamente aquilo que incrementa o logos e o mal é aquilo que lhe causa dano. O verdadeiro bem, para o homem, é somente a virtude; o verdadeiro mal é só o vício.

Como considerar então aquilo que é útil ao corpo e à nossa natureza biológica? E como denominaremos o contrário disso? A tendência de fundo do estoicismo é aquela de negar a todos estas coisas o qualificativo de “bem” e de “mal”, exatamente porque, como se viu, bem e mal são somente aquilo que é útil e aquilo que é nocivo ao logos, portanto, só o bem e o mal moral. Por isso, todas as coisas que são relativas ao corpo, quer sejam nocivas, quer não, são consideradas “indiferentes” (adiáphora) ou, mais exatamente, “moralmente indiferentes”. Entre as coisas moralmente indiferen­tes são conseqüentemente colocadas quer as coisas física e biologi­camente positivas, como vida, saúde, beleza, riqueza etc., quer as física e biologicamente negativas, como morte, doença, brutali­dade, pobreza, ser escravo ou imperador etc.

Esta nítida separação, operada entre os bens e os males, por um lado, e os indiferentes, por outro, é indubitavelmente um dos traços mais característicos da ética estóica, que já na Antigüidade foi objeto de enorme estupor e de vivazes concordâncias e dissen­timentos, suscitando múltiplas discussões entre os adversários e às vezes entre os próprios seguidores da filosofia do Pórtico. Com efeito, com esta radical cisão, os estóicos podiam colocar o homem ao abrigo dos males da época em que viviam: todos os males derivados do desmoronamento da antiga pólis e todos os perigos, inseguranças e adversidades provenientes das convulsões políticas e sociais que se seguiram a tal desmoronamento vinham simples­mente negados como males e confinados entre os “indiferentes”.

Esse era iam modo bastante audaz de dar uma nova segurança ao homem, ensinando-lhe que bens e males derivam sempre e só do interior do próprio eu e não do exterior e convencendo-o, assim, de que a felicidade podia ser perfeitamente conseguida de modo absolutamente independente dos eventos externos e que se podia ser feliz até em meio aos tormentos físicos, como também dizia Epicuro.

Alei geral da oikeíosis implicava que, dado que é um instinto de todos os seres o de conservar-se a si mesmo e dado que esse próprio instinto é fonte de valorizações, se devia reconhecer como positivo tudo o que o conserva e incrementa, mesmo ao simples nível físico e biológico. Assim, não só para os animais, mas também para os homens, se devia reconhecer como positivo tudo o que está em conformidade com a natureza física e que garante, conserva e incrementa a vida, como, por exemplo, a saúde, a força, o vigor do corpo e dos membros e assim por diante. Os estóicos chamaram esse positivo segundo a natureza de “valor” ou “estima”, enquanto o oposto negativo chamaram de “falta de valor” ou “falta de estima”.

Portanto, os “intermediários” que estão entre os bens e males deixam de ser de todo “indiferentes”, ou melhor, embora permanecendo moralmente indiferentes, tomam-se, do ponto de vista físico, “valores” e “desvalores”.

Daí decorre, em conseqüência, que, da parte da nossa natu­reza animal, os primeiros serão objeto de “preferência”; os segun­dos, ao contrário, serão objeto de “aversão”. E nasce assim uma segunda distinção, estreitamente dependente da primeira: os indiferentes “preferidos” e os indiferentes “não preferidos” ou “recusados”.

Essas distinções correspondiam não só a uma exigência de atenuar realisticamente a excessivamente nítida dicotomia entre “bens e males” e “indiferentes”, por si só paradoxal, mas encontra­vam nos pressupostos do sistema vima justificação até mesmo maior do que a referida dicotomia, pelas razões já ilustradas. Por isso, é compreensível que a tentativa de Ariston e de Hérilo de defender a absoluta adiaphoria ou “indiferença” das coisas que não são nem bens nem males tenha encontrado tão nítida oposição em Crísipo, que defendeu a posição de Zenão e a consagrou definitiva­mente.

As ações humanas cumpridas em tudo e por tudo segundo o logos chamam-se “ações moralmente perfeitas”; as contrárias são “ações viciosas ou erros morais”. Mas, entre as primeiras e as segundas, há todo um feixe de ações relacionadas com os “indife­rentes”. Quando essas ações forem cumpridas “conforme à natu­reza”, vale dizer, de modo racionalmente correto, terão uma plena justificação moral, chamando-se assim “ações convenientes” ou “deveres”. A maior parte dos homens, que é incapaz de ações “moralmente perfeitas” (porque, para cumpri-las, é necessário adquirir a ciência perfeita do filósofo, já que a virtude, como aperfeiçoamento de racionalidade humana, só pode ser ciência, como queria Sócrates), é, no entanto, capaz de “ações convenien­tes”, ou seja, é capaz de absorver “deveres”. O que as leis mandam (as quais, para os estóicos, longe de serem convenções, são expres­sões da Lei eterna que provém do Logos eterno) são “deveres” que, no sábio, graças à perfeita disposição do seu espírito, tomam-se verdadeiras e exatas ações morais perfeitas, enquanto que, no homem comum, permanecem só ao nível das “ações convenientes”.

Esse conceito de kathékon é substancialmente uma criação estóica. Os romanos, que o traduziram pelo termo “officium” com sua sensibilidade prático-jurídica, contribuíram para talhar mais nitidamente os contornos desta noção moral que nós, modernos, chamamos de “dever”. Obviamente, antes dos estóicos, pode-se encontrar entre os gregos o correspondente daquilo que o Pórtico chama de kathékon, expresso de vários modos, mas nunca redu­zido unitariamente a problema e não formulado com precisão consciente. Max Pohlenz pensa que Zenão pode ter extraído do patrimônio espiritual semítico o conceito de “mandamento”, tão familiar aos hebreus, criando então o conceito de kathékon pelo enxerto do conceito de mandamento no conceito grego de physis. Isso é verossímil. Mas o certo é que Zenão e a Estoá, com a elaboração do conceito de kathékon, deram à história espiritual do Ocidente tuna contribuição de grande relevo: com efeito, embora modulado de várias maneiras, o conceito de “dever” se manteve como uma verdadeira categoria do pensamento moral ocidental. Mas os estóicos também apresentaram novidades no que diz res­peito à interpretação do viver social.

O homem é impulsionado pela natureza a conservar o próprio ser e amar a si mesmo. Mas esse instinto primordial não está orientado somente para a conservação do indivíduo: o homem estende imediatamente a oikeíosis aos seus filhos e aos seus parentes e mediatamente a todos os seus semelhantes. Em suma: é a natureza que, como impõe o amar a si mesmo, impõe também amar aos que geramos e aqueles que os geraram; e é a natureza que impulsiona o indivíduo a unir-se aos outros e também a ser útil aos outros.

De ser que vive encerrado em sua individualidade, como queria Epicuro, o homem toma-se “animal comunitário”. E a nova fórmula demonstra que não se trata de uma simples retomada do pensamento aristotélico, que definia o homem como “animal polí­tico”: o homem, mais ainda do que ser feito para associar-se numa Pólis, é feito para consorciar-se com todos os homens. Nessa base, os estóicos só podiam ser fautores de um ideal fortemente cosmo­polita.

Com base em seu conceito de physis e de logos, os estóicos, mais do que os outros filósofos, também souberam colocar em crise antigos mitos da nobreza de sangue e da superioridade da raça, bem como a instituição da escravidão: a nobreza é chamada cinicamente de “escória e raspa da igualdade”; todos os povos são declarados capazes de alcançar a virtude; o homem é proclamado estruturalmente livre: com efeito, “nenhum homem é, por natu­reza, escravo”. Os novos conceitos de nobreza, de liberdade e de escravidão ligam-se à sabedoria e à ignorância: o verdadeiro homem livre é o sábio, o verdadeiro escravo é o tolo.

Dessa forma, os pressupostos da política aristotélica são completamente infringidos: pelo menos ao nível do pensamento, o logos reestabeleceu a igualdade fundamental entre os homens.

Um último ponto a considerar: a célebre doutrina da “apatia”. As paixões, das quais depende a infelicidade do homem, são, para os estóicos, erros da razão ou, de qualquer modo, conseqüências deles. Enquanto tais, ou seja, enquanto erros do logos, é claro que não tem sentido, para os estóicos, “moderar” ou “circunscrever” as paixões: como já dizia Zenão, elas devem ser destruídas, extirpadas e erradicadas totalmente. Cuidando do seu logos e fazendo-o ser o mais possível reto, o sábio não deixará sequer nascerem as paixões em seu coração ou as aniquilará ao nascerem. Essa é a célebre “apatia” estóica, isto é, o tolhimento e a ausência de toda paixão, que é sempre e só perturbação do espírito. A felicidade, pois, é apatia e impassibilidade.

A apatia que envolve o estóico é extrema, acabando por se tomar verdadeiramente enregelante e até inumana. Com efeito, considerando que piedade, compaixão e misericórdia são paixões, o estóico deve extirpá-las de si, como se lê neste testemunho: “A misericórdia é parte dos defeitos e vícios da alma: misericordioso é o homem estulto e leviano. (...) O sábio não se comove em favor de quem quer que seja; não condena ninguém por uma culpa cometida. Não é próprio do homem forte deixar-se vencer pelas imprecações e afastar-se da justa severidade.”

A ajuda que o estóico dá aos outros homens só poderá, assim, ser asséptica, longe de qualquer “simpatia” humana, exatamente como o frio logos está distante do calor do sentimento. Assim, o sábio deve se mover entre os seus semelhantes em atitude de total distanciamento, seja quando fizer política, seja quando se casar, seja quando cuidar dos filhos, seja quando fizer amizades, acaban­do por tomar-se estranho à própria vida: com efeito, o estóico não é um entusiasta da vida, nem um amante dela, como o epicurista. E, enquanto Epicuro apreciava até os últimos instantes da vida e os gozava, feliz embora entre os tormentos do mal, Zenão numa atitude paradigmática, após uma queda na qual divisou um sinal do Destino, atirava-se, quase feliz por terminar a vida, aos braços da morte, gritando: “Venho, por que me chamas?”