Tales de Mileto

O pensador ao qual a tradição atribui o começo da filosofia grega é Tales, que viveu em Mileto, na Jônia, provavelmente nas últimas décadas do século VII e na primeira metade do século VI a.C. Além de filósofo, foi cientista e político destacado. Não se tem conhecimento de que tenha escrito livros. Só conhecemos o seu pensamento através da tradição oral indireta.

Tales foi o iniciador da filosofia da physis, pois foi o primeiro a afirmar a existência de um princípio originário único, causa de todas as coisas que existem, sustentando que esse princípio é a água. Essa proposta é importantíssima, como veremos logo, po­dendo com boa dose de razão ser qualificada como “a primeira proposta filosófica daquilo que se costuma chamar ‘civilização ocidental” (A. Maddalena). A compreensão exata dessa proposta pode nos fazer entender a grande revolução operada por Tales, que levaria à criação da filosofia.

“Princípio” (arché) não é um termo de Tales (talvez tenha sido introduzido por seu discípulo Anaximandro, mas alguns pensam numa origem ainda mais tardia), mas é certamente o termo que indica melhor do que qualquer outro o conceito daquele quid do qual derivam todas as coisas. Como nota Aristóteles em sua exposição sobre o pensamento de Tales e dos primeiros físicos, o “princípio” é “aquilo do qual derivam originariamente e no qual se ultimam todos os seres”, é “uma realidade que permanece idêntica no transmutar-se de suas alterações”, ou seja, uma realidade “que continua a existir imutada, mesmo através do processo gerador de todas as coisas”.

Assim, o “princípio” é:

a) a fonte e origem de todas as coisas;

b) a foz ou termo último de todas as coisas;

c) o sustentáculo permanente que mantém todas as coisas (a “substância”, podería­mos dizer, usando um termo posterior). Em suma, o “princípio” pode ser definido como aquilo do qual provêm, aquilo no qual se concluem e aquilo pelo qual existem e subsistem todas as coisas.

Os primeiros filósofos (se não o próprio Tales) denominaram esse princípio com o termo physis, que indica a natureza, não no sentido moderno do termo, mas no sentido original de realidade primeira e fundamental, ou seja, “aquilo que é primário, funda­mental e persistente, em oposição àquilo que é secundário, deriva­do e transitório” (J. Bumet).

Assim, os filósofos que, a partir de Tales até o fim do século V a.C., indagaram em tomo da physis foram denominados “físicos” ou “naturalistas”. Portanto, somente recuperando a acepção ar­caica do termo e captando adequadamente as peculiaridades que a diferenciam da acepção moderna é que será possível entender o horizonte espiritual desses primeiros filósofos.

Mas fica ainda por esclarecer o sentido da identificação do “princípio” com a “água” e as suas implicações.

A tradição indireta diz que Tales deduziu essa sua convicção “da constatação de que a nutrição de todas as coisas é úmida”, de que as sementes e os germes de todas as coisas “têm natureza úmida” e de que, portanto, a secagem total significa a morte. Assim, como a vida está ligada à umidade e esta pressupõe a água, então a água é a fonte última da vida e de todas as coisas. Tudo vem da água, tudo sustenta sua vida com água e tudo acaba na água.

Ainda na Antiguidade, alguns procuraram reduzir o alcance dessas afirmações de Tales, reivindicando como anteriores as afirmações daqueles (como, por exemplo, Homero e outros) que consideravam Oceano e Tétis, respectivamente, como pai e mãe das coisas e que também haviam sustentado a crença de que os deuses juravam sobre o Estige (que é o rio dos Infernos e, portanto, água), destacando que aquilo sobre o que se jura é precisamente aquilo que é o primeiro e supremo (o princípio). Mas é claríssima a diferença entre essas ideias e a posição de Tales. De fato, Tales baseia sua afirmação no puro raciocínio, no logos; os outros, ao contrário, baseavam-se na imaginação e no mito. Ou seja, o primeiro apresenta uma forma de conhecimento motivado por argumentações racionais, ao passo que os outros apresentavam apenas crenças fantástico-poéticas. De resto, o nível de racionali­dade ao qual Tales já se havia elevado pode ser demonstrado pelo fato de que ele havia pesquisado os fenômenos do céu a ponto de predizer (para estupefação de seus concidadãos) um eclipse (talvez o de 585 a.C.). Ao seu nome também está ligado um célebre teorema de geometria.

Mas não se deve acreditar que a água de Tales seja o elemento físico-químico que bebemos. A água de Tales deve ser pensada em termos totalizantes, ou seja, como a physis líquida originária da qual tudo deriva e da qual a água que bebemos é apenas uma das manifestações. Tales é um “naturalista” no sentido antigo do termo e não um “materialista” no sentido moderno e contemporâneo. Com efeito, a sua “água” coincidia com o divino: dizia ele que “Deus é a coisa mais antiga, porque incriada”, ou seja, porque princípio. Desse modo, se introduz ao pensamento uma nova concepção de Deus: trata-se de uma concepção na qual predomina a razão, destinada, enquanto tal, a logo eliminar todos os deuses do poli­teísmo fantástico-poético dos gregos.

Ao afirmar posteriormente que “tudo está pleno de deuses”, Tales queria dizer que tudo é permeado pelo princípio originário. E, como o princípio originário é vida, tudo é vivo e tudo tem uma alma (panpsiquismo). O exemplo do ímã que atrai o ferro era apresentado por ele como prova da animação universal das coisas (a força do ímã é a manifestação de sua alma, ou seja, precisamente de sua vida).

Com Tales, o logos humano rumou com segurança pelo caminho da conquista da realidade em seu todo (a questão do princípio de todas as coisas) e em algumas de suas partes (as que constituem o objeto das “ciências particulares”, como hoje as chamamos).