Os escritos, as “doutrinas não escritas” e suas relações

Especialmente ao longo das últimas décadas, adquiriu evi­dência um terceiro problema, o das chamadas “doutrinas não escritas”, que tomou a questão platônica ainda mais complexa e, por vários aspectos, demonstrou ser de decisiva importância. Hoje, muitos estudiosos consideram que da solução desse problema depende a compreensão correta do pensamento platônico em geral e da própria história doplatonismo na Antigüidade.

Antigas fontes nos referem que, na Academia, Platão minis­trou cursos intitulados Sobre o bem, cujo teor ele não quis escrever. Em tais cursos, discorria sobre realidades últimas e supremas, ou seja, sobre os primeiros princípios, adestrando os discípulos para a compreensão desses princípios através de um rigoroso raciocínio metódico e dialético. Platão estava convencido de que essas “rea­lidades últimas e supremas” não podiam ser transmitidas senão através de adequada preparação e de rigorosas observações, que só podem ocorrer no diálogo vivo e através do emprego oral da dialética.

O próprio Platão nos dá conta disso em sua Carta VII: “O conhecimento dessas coisas não é de forma alguma transmissível como os outros conhecimentos, mas apenas após muitas discussões sobre tais coisas e após um período de vida em comum, quando, de modo imprevisto, como luz que se acende de vima simples fagulha, esse conhecimento nasce na alma e de si mesmo se alimenta.” E ainda: “(...) essas coisas são aprendidas necessariamente em conjunto, como é em conjunto que aprendemos o verdadeiro e o falso relativos à realidade no seu todo, após aplicação total e após muito tempo,como afirmei no início. Pondo-se essas coisas em contato umas com as outras, ou seja, nomes e definições, visões e sensações, submetidos à prova em debates cordiais e avaliados em discussões isentas de paixão, então resplandecerão de repente o conhecimento e a intuição intelectual para aquele que nesse sentido realizar o máximo esforço possível à capacidade humana.” Em suma, nesse ponto Platão mostrou-se absolutamente firme e sua decisão foi categórica: “Sobre essas coisas não há nenhum escrito meu e nunca haverá.”

Entretanto, os discípulos que assistiram às lições escreve­ram essas doutrinas Sobre o bem e alguns desses escritos chegaram até nós. Platão desaprovou a iniciativa e, mais ainda, condenou expressamente esses escritosconsiderando-os nocivos e inúteis, pelas razões já mencionadas. Admitiu, porém, que alguns desses discípulos haviam compreendido bem suas lições.

Para concluir, além dos diálogos escritos, para bem com­preender Platão, também precisamos contar com as “doutrinas não escritas” que nos foram legadas pela tradiçãoindireta, doutrinas essas que constituem certas partes de diálogos que no passado se revelaram enigmáticas ou problemáticas, recebem nova luz exa­tamente à medida que possam ser confrontadas com as “doutri­nas não escritas”.

Finalmente, cumpre observar que os diálogos escritos reme­tem a um discurso que alcança alto nível de expressão e cujo fecho se encontra somente nas “doutrinas não escritas”, expostas nas lições ministradas aos discípulos da Academia e compiladas sob o título de “Sobre o bem”, que constituem ponto de referência essencial para a compreensão do pensamento platônico.