O primeiro problema que surge em relação aos trinta e seis escritos é o seguinte: são todos eles autênticos ou existem os não autênticos? E quais são eles?
A crítica do século passado se empenhou de forma incrivelmente meticulosa na questão da autenticidade, chegando a extre- mismos hipercríticos verdadeiramente surpreendentes. Duvidou- se da autenticidade de quase todos os diálogos. Posteriormente, o
problema passou a perder importância e, hoje, tende-se a considerar autênticos quase todos os diálogos ou até mesmo todos.
O segundo problema concerne à cronologia dos escritos platônicos. Não se trata de um simples problema de erudição, porquanto o pensamento platônico sofreu contínuo desenvolvimento, enriquecendo-se através da autocrítica e a autocorreção. A partir de fins do século passado, em parte através da utilização do critério estilométrico, ou seja, do estudo científico das características estilísticas das diversas obras, se conseguiu propor uma resposta pelo menos parcial para o problema.
Tomando-se como ponto de partida As Leis, que constituem certamente o último escrito de Platão, após acurado exame das características estilísticas dessa obra, buscou-se estabelecer quais os outros escritos que apresentam essas características. Usando- se também critérios colaterais, pôde-se concluir que, provavelmente, os escritos do último período são, pela ordem, os seguintes: Teeteto, Parmènides, O Sofista, A Política, Filebo, Timeu, Crítias e As Leis. Depois também foi possível estabelecer que a. República pertence à fase central da produção platônica, que a precede Fédon e oBanquete, e que a segue Fedro. Pôde-se outrossim verificar que um grupo de diálogos representa o período de amadurecimento e de passagem da fase juvenil para a fase mais original: o Górgias pertence provavelmente ao período imediatamente anterior à primeira viagem à Itália e o Menonao período imediatamente seguinte. A esse período de amadurecimento, provavelmente, também pertence o Crátilo. O Protágoras representa, talvez, o coroamento da primeira fase da atividade literária de Platão. A maioria dos outros diálogos, especialmente os breves, constitui certamente escritos de juventude, o que, de resto, se confirma pela temática acentuadamente socrática que neles se discute. Alguns desses diálogos podem ter sido retocados e parcialmente refeitos na idade madura. De qualquer forma, no estado atual dos estudos, está estabelecido definitivamente que os chamados “diálogos dialéticos” (Parmènides, O Sofista, A Política, Filebo) são obras da última fonte literária de Platão e que os grandes diálogos metafísicos representam obras da maturidade, embora permaneça alguma incerteza em relação aos primeiros. Assim, é possível reconstruir o pensamento platônico de modo suficientemente satisfatório.
O desenvolvimento espiritual de Platão é o seguinte.
De início, ele abordou uma problemática acentuadamente ética (ético-política), partindo exatamente da posição à qual chegara Sócrates. Posteriormente, deu-se conta da necessidade de recuperar os temas centrais da filosofia daphysis. Entretanto, a recuperação das instâncias ontocosmológicas dos físicos aconteceu de modo extremamente original, ou melhor, através de uma autêntica revolução do pensamento, que o próprio Platão denominou “segunda navegação”, ou seja, aquela navegação que o levou à descoberta do supra-sensível (do ser suprafísico), como veremos na segunda seção deste capítulo.
A descoberta do ser supra-sensível e de suas categorias acionou vim processo de revisão de vima série de antigos problemas e deu origem a problemas novos, que Platão passou a discutir e aprofundar paulatinamente nos diálogos da maturidade e da velhice, com incansável afinco. Disso falaremos, entretanto, no decorrer da exposição de seu pensamento.