O mito do carro alado

No Fedro, Platão já propôs uma visão do outro mundo ainda mais complexa. As razões disso devem ser buscadas no fato de que nenhum dos mitos até agora examinados explica a causa da descida das almas aos corpos, a vida anterior das almas e as razões da sua afinidade com o divino.

Originariamente, a alma se encontrava junto aos deuses, vivendo uma vida divina. Em conseqüência de uma culpa, viu-se sobre a terra, projetada num corpo. A alma'se assemelha a um carro alado puxado por dois cavalos e guiado pelo auriga. Enquanto os dois cavalos dos deuses são igualmente bons, os dois cavalos das almas dos homens são de raças diferentes: um é bom e outro é mau. Isso toma difícil a operação de guiá-los.(O auriga simboliza a razão e os dois cavalos representam as partes a-lógicas da alma, a concupiscível e a irascível, sobre as quais discorreremos adiante; segundo alguns, porém, os dois cavalos e o auriga simbolizariam os três elementos com os quais o Demiurgo foijou a alma.) As almas desfilam no cortejo dos deuses, voando pelas estradas do céu e procurando, em conjunto com os deuses, chegar periodicamente ao ápice do céu, para contemplar aquilo que está além do céu, o Hiperurânio (o mundo das Idéias) ou, como também se expressa Platão, “a Planície da verdade”. Mas, ao invés do que acontece com os deuses, para as nossas almas constitui uma árdua empresa procurar contemplar o Ser que reside além do céu e apascentar-se na “Planície da verdade”, especialmente por causa do cavalo mau, que puxa para baixo. Sucede, então, que algumas almas conse­guem contemplar o Ser ou, pelo menosfparte dele e, por essa razão, continuam a viver com os deuses. Outrás almas, ao contrário, não conseguem chegar à “Planície da verdade”; amontoam-se e não conseguindo subir a ladeira que conduz ao ápice do céu, chocam-se e atropelam-se; dem-se uma briga, as asas quebram-se e as almas tomando-sepesadas, precipitam sobre a terra.

Conseqüentemente, quando uma alma consegue contemplar o Ser e apascentar-se na “Planície da verdade”, ela não cai em um corpo na terra e, de ciclo em ciclo, continua a viver em companhia dos deuses e dos demônios. A vida humana à qual a alma dá origem é moralmente mais perfeita na proporção que mais houver “con­templado” a verdade no Hiperurânio e moralmente menos perfeita quanto menos a tenha “contemplado”. Após a morte do corpo, a alma é julgada e, durante um milênio, como já sabemos através de A República, usufruirá de prêmios ou cumprirá penas correspondentes aos méritos ou deméritos da vida terrena. E, após o milésimo ano, voltará a se reencarnar.

Entretanto, em relação à República, o Fedro apresenta ainda uma novidade. Transcorridos dez mil anos, todas as almas retomam as asas e retornam para junto dos deuses. As almas que viveram de acordo com os ensinamentos da filosofia por três vidas consecutivas constituem exceção e gozam por isso de um destino privilegiado porque retomam as asas após três mil anos. Está claro, portanto, que no Fedro o lugar em que as almas vivem com os deuses e ao qual retomam a cada dez mil anos e o lugar em que gozam do prêmio milenáriopelas vidas já vividas pareceriam constituir lugares diferentes.