O mito de Er e seu significado

Terminada a viagem de mil anos, reúnem-se as almas em uma planície, onde será determinado o destino futuro de cada uma delas. Nesse aspecto Platão realiza uma autêntica revolução em relação à crença grega tradicional, segundo a qual caberia aos deuses e à Necessidade decidir o destino do homem. Os “paradigmas das vidas”, diz Platão, se encontram no regaço da Moira Láquesis, filha da Necessidade. Tais paradigmas, entretanto,não são impostos mas apenas propostos às almas: a escolha fica intei­ramente entregue à liberdade das próprias almas. O homem não é livre de escolher entre viver ou não viver, mas é livre de optar por viver ou não de acordo com as normas da moral, ou seja, pode escolher viver segundo a virtude ou arrastado pelo vício. “E contou Er que, tendo chegado até aqui, deviam se dirigir a Láquesis; e que um profeta, antes de mais nada, dispôs as almas em ordem e depois, tomando dos joelhos de Láquesis os destinos e os paradigmas das vidas, subiu a um alto púlpito e disse: ‘Eis o que diz a virgem Láquesis, filha de Necessidade:‘Almas efêmeras, é este o início de outro período da vida, que não passa de um correr para a morte. Não será o demônio que vos escolherá, mas vósescolhereis o vosso demônio. E o primeiro sorteado escolha, por primeiro, a vida à qual deverá estar ligado por necessidade. A virtude não tem dono: cada qual participará mais ou menos dela na proporção que lhe presta homenagem ou a despreza. A culpa cabe a quem escolhe: Deus não tem culpa disso’ ”.

Dito isso, um profeta de Láquesis sorteia os números para estabelecer a ordem segundo a qual cada alma deve dirigir-se para a escolha. O número que cabe a cada alma é o que lhe fica mais perto. Então, o profeta estende sobre a relva os paradigmas das vidas (paradigmas de todas as possíveis vidas humanas e também animais), em número bastante superior ao das almas presentes. A primeira à qual cabe a escolha tem à disposição muito mais paradigmas de vida do que a última. Isso, porém, não vicia de forma irreparável a escolha, porquanto, mesmo para a última, resta a possibilidade da escolha de uma vida boa, caso não lhe seja possível escolher uma vida ótima.

A escolha que cada um realiza recebe confirmação das duas Moiras, Clótos e Atropos, tomando-se, assim, irreversível. Então, as almas bebem o esquecimento nas águas do rio Ameletes (rio do esquecimento) e descem aos corpos para viver a vida escolhida.

Dissemos que a escolha depende da “liberdade das almas”, mas seria mais exato dizer do “conhecimento” ou da “ciência da vida boa e má”, isto é, da “filosofia”, que, para Platão, se transforma em força salvadora, neste mundo e no outro, para sempre. Aqui o intelectualismo ético é levado a conseqüências extremas. Diz Platão: “Se alguém, vindo viver neste mundo, se entrega ao filosofar de forma sadia e a sorte da escolha não o tenha colocado entre os últimos, não apenas existe para ele a possibilidade (...) de encontrar nesta terra a felicidade, mas a própria viagem deste mundo para o outro e novamente de lá para cá não será subterrânea e incômoda, mas sim uma viagem tranqüila e para o céu”.