A metempsicose e os destinos da alma após a morte

O destino das almas após a morte do corpo é exposto por Platão através da narração de mitos diversos, revelando-se extre­mamente complexo. Entretanto, é absurdo pretender das narra­ções míticas a linearidade lógica que transparece apenas nos discursos dialéticos. O objetivo dos mitos escatológicos consiste em estimular, de diversas maneiras e mediante diferentes represen­tações, a crença em algumas verdades fundamentais que não advêm de soluções estruturadas com base no logos puro, embora não entrem em contradição com ele e, às vezes, até sejam susten­tadas por ele.

Entretanto, para que se possa elaborár uma idéia precisa sobre o destino das almas após a morte, é importante, em primeiro lugar, esclarecer a concepção platônica de“metempsicose”. Como sabemos, a metempsicose é a doutrina que ensina a transmigração da alma em vários corpos e, por conseguinte, propõe o “renasci­mento” da alma em diferentes formas de seres vivos. Platão retoma essa doutrina do orfismo, mas a amplia de várias maneiras, apresentando-a de duas formas complementares.

A primeira forma aparece de modo mais detalhado noFédon, que afirma que as almas que viveram uma vida excessivamente ligada ao corpo, às paixões, ao amor e aos prazeres dele derivados, não conseguem, com a morte, separar-se inteiramente do que é corpóreo, portanto o corpóreo se lhes tomou co-natural. Durante certo tempo, com medo do Hades, essas almas vagam junto aos sepulcros, como fantasmas, até que, atraídas pelo desejo do corpó­reo, se lhe ligam novamente a corpos, não apenas de homens mas também de animais, de acordo com o nível de perfeição moral por elas alcançado na vida anterior. Já as almas que tiverem vivido na prática da virtude, não da virtude filosófica, mas da comum, encamarse-ão em animais mansos e sociáveis ou até mesmo em homens honestos e virtuosos assegura Platão: “A estirpe dos deuses, entretanto, não é permitido chegar a quem não tenha cultivado a filosofia e não se tenha desligado do corpo em situação de total pureza, pois essa permissão é concedida apenas àquele que foi amante do saber.”

Em A República, porém, Platão menciona um segundo tipo de reencamação, notavelmente diferente do que expusemos acima. O número das almas é limitado. Assim sendo, se todas fossem contempladas no além com um prêmioou com um castigo eternos, haveria um certo momento em que nenhuma alma restaria sobre a terra. Por essa evidente razão, considera Platão que tanto o prêmio como o castigo ultraterrenos por uma vida transcorrida sobre a terra devem possuir duração limitada e termo fixo. Consi­derando que uma vida terrena dura no máximo cem anos, Platão, certamente influenciado pela mística pitagórica do número dez, acha que a vida ultraterrena deve durar dez vezes cem anos, isto é, mil anos. Para as almas que cometeram crimes gravíssimos e irreparáveis, a punição continua mesmo após o milésimo ano. Transcorrido esse ciclo, devem as almas voltar a se encarnar.

Idéias análogas emergem do mito presente no Fedro(embora com diferenças nas modalidades e nos ciclos de tempo), do qual resulta que as almas ciclicamente recaem nos corpos e poste­riormente sobem ao céu.

Por conseguinte, estamos diante de um ciclo “individual” de reencarnações, ou seja, perante um ciclo vinculado às vicissitudes do indivíduo, e de um ciclo “cósmico”, que é o ciclo milenar. E é justa­mente a este que se referem os dois célebres mitos: de Er, contido exa. A República, e o do carro alado, presente no Fedro, mitos que passaremos agora a examinar.