A descoberta da correspondência estrutural entre as doenças, o caráter do homem e o ambiente na obra Sobre as águas, os ventos e os lugares

O tratado Sobre as águas, os ventos e os lugares está entre os mais extraordinários do Corpus Hippocraticum. O leitor atual não pode deixar de ficar estupefato diante da “modernidade” de algumas opiniões nele expressas.

São duas as teses de fundo:

1) A primeira contitui uma ilustração paradigmática do que já destacamos acerca da própria colocação da medicina como ciência, derivada do discurso dos filósofos na sua estrutura racio­nal. O homem é visto no conjunto em que se encontra naturalmente inserido, ou seja, no contexto de todas as coordenadas que consti­tuem o ambiente em que ele vive: as estações, suas mudanças e suas influências, os ventos típicos de cada região, as águas carac­terísticas dos lugares e suas propriedades, as posições dos lugares, o tipo de vida dos habitantes. O “pleno conhecimento de cada caso individual”, portanto, depende do conhecimento do conjunto des­sas coordenadas, o que significa que, para compreender a parte, é preciso compreender o todo ao qual a parte pertence. A natureza dos lugares e daquilo que os caracteriza incide sobre a constituição e o aspecto dos homens e, portanto, sobre a saúde e sobre as doenças. O médico que quer curar o doente deve conhecer precisa­mente essas correspondências.

2) A outra tese (a mais interessante) é que asinstituições políticas também incidem sobre o estado de saúde e as condições gerais dos homens: “Parece-me que é por essas razões que são fracos os povos da Ásia — e, além disso, também pelas intituições. Com efeito, grande parte da Ásia é dirigida por monarquias. Onde os homens não são senhores de si mesmos e das próprias leis, mas sujeitos a déspotas, eles não pensam em se adestrar para a guerra, mas sim em como parecer inaptos para o combate.” A democracia, portanto, tempera o caráter e a saúde, ao passo que o despotismo produz efeitos opostos.