“O mal sagrado” e a redução de todos os fenômenos morbosos a uma mesma dimensão

Na Antigüidade, o “mal sagrado” era a epilepsia, no sentido que era considerada efeito de causas não-naturais e, portanto, conseqüência de uma intervenção divina. No lúcido escrito que leva esse título, Hipócrates demonstra a seguinte tese, de modo exem­plar:

  • a) a epilepsia é considerada “mal sagrado” porque se apre­senta como um fenômeno estupefaciente e incompreensível;
  • b) na realidade, porém, há doenças não menos estupefacientes, como certas manifestações febris e o sonambulismo; portanto, a apilepsianão é diferente dessas outras doenças;
  • c) assim, foi a ignorância da causa que levou a considerar a epilepsia como “mal sagrado”;
  • d) assim sendo, aqueles que pretendem curá-la com atos de magia são embusteiros e impostores;
  • e) ademais, estão em contradição con­sigo mesmos, pois pretendem curar com práticas humanas males julgados divinos, de modo que essas práticas, longe de serem expressões de religiosidade e devoção, são ímpias e atéias, porque pretenderiam exercer um poder sobre os deuses.

Ò poderoso racionalismo dessa obra revela-se de particular relevo, pois Hipócrates, longe de ser um ateu, mostra ter compre­endido perfeitamente a estatura do divino, ao sustentar precisa­mente nessas bases a impossibilidade de misturar o divino, de modo absurdo, com as causas das doenças: as causas de todas as doenças pertencem a uma única e mesma dimensão. Escreve ele: “(...) não creio que o corpo do homem possa ser contaminado por um deus, o mais corruptível pelo mais sagrado. Mas, mesmo que seja contaminado ou, de qualquer modo, atingindo por vim agente externo, ele será mais purificado e santificado por um deus do que contaminado. Certamente, é o divino que nos santifica,purifica e limpa dos nossos gravíssimos e ímpios erros: nós mesmos traçamos os limites dos tempos e recintos dos deuses para que não os ultrapasse ninguém que não esteja puro e, ao entrar neles, nos aspergimos, não porque estejamos por nos contaminar, mas sim para nos limpar se já carregamos alguma mancha sobre nós.”

Qual é, então, a causa da epilepsia? É uma alteração do cérebro derivada das mesmas causas racionais de que derivam todas as outras alterações morbosas, uma “adição” ou “subtração” de seco e úmido, quente e frio etc. Portanto, conclui Hipócrates, quem, “através do regime, sabe determinar nos homens o seco e o úmido, o frio e o quente, também pode curar esse mal, se conseguir perceber o momento oportuno para um bom tratamento, sem qualquer purificação ou magia”.