O manifesto da medicina hipocrática: A medicina antiga

Como dissemos, a medicina é amplamente devedora da filosofia. Mas agora é necessário explicitar melhor essa afirmação. Surgida do contexto do esquema geral de racionalidade instaurado pela filosofia, a medicina teve que distanciar-se da filosofia para não ser por ela reabsorvida.Com efeito, a escola médica itálica havia feito uso dos quatro elementos de Empédocles (água, ar, terra e fogo) para explicar doença e saúde, vida e morte, caindo em um dogmatismo que esquecia a experiência concreta e que Hipócrates considera até deletério. A medicina antiga é uma denúncia dessedogmatismo e a reivindicação de um estatuto antidogmático para a medicina, uma independência em relação à filosofia de Empédocles. Escreve Hipócrates: “Estão profundamente em erro todos os que puseram-se a falar ou escrever sobre medicina fundamentando- o seu discurso em um postulado, oquente e o frio, o úmido e o seco ou qualquer outro que tenham escolhido, simpli­ficando em excesso a causa original das doenças e da morte dos .homens, atribuindo a mesma causa a todos os casos, porque se baseiam em um ou dois postulados.”

Hipócrates não nega que esses fatores entrem na produção da doença e da saúde, mas acha que eles entram de modo muito variado e articulado, porque, na natureza, tudo está misturado junto (note-se aqui como, habilmente, Hipócrates vale-se do postu­lado de Anaxágoras, segundo o qual tudo está em tudo, precisa­mente para derrotar os postulados de Empédocles): “Alguém, no entanto, poderia dizer: ‘Mas quem está febricitante, por febres ardentes, pulmonites e outras doenças violentas, não se liberta tão rápido da febre, nem nesse caso há alternância de quente e frio.’ Mas eu considero que precisamente essa é uma grande prova de que os homens não ficam febris simplesmente pelo quente, que não é a única causa dos males, mas sim que a mesma coisa é ao mesmo tempo amarga e quente, ácida e quente, salgada e quente e assim ao infinito e, reciprocamente com as outras propriedades, também é fria. Assim, o que incomoda é tudo isso, incluindo-se aí também o quente, que participa da força do fator dominante e junto com ele se agrava e aumenta, mas que, em si mesmo, não tem outras propriedades fora daquelas que lhe são próprias.”

O conhecimento médico é um conhecimento preciso e rigoroso da dieta conveniente e de sua justa medida. Essa explicitação não pode derivar de critérios abstratos ou hipotéticos, mas apenas da experiência concreta, da “sensação do corpo” (parece-nos estar ouvindo um eco de Protágoras!).

Assim, o discurso médico não deve se dar em tomo da essência do homem geral, sobre as causas do seu aparecimentoe questões semelhantes. Deve desenvolver-se em tomo do que é o homem como um ser físico concreto que tem relação com aquilo que come, com aquilo que bebe, com o seu específico regime de vida e coisas semelhantes: “Na verdade, eu considero que a ciência de algum modo certa da natureza não pode derivar de qualquer outra coisa senão da medicina e que só será possível adquiri-la quando a própria medicina for toda ela explorada com método correto. Mas disso estamos muito distantes, isto é, de conquistar um saber exato sobre o que é o homem, sobre as causas que determinam o seu aparecimento e outras questões semelhantes. Mas pelo menos uma coisa parece-me necessário que o homem saiba sobre a natureza e faça todo esforço para sabê-lo, se quiser de alguma forma cumprir seus deveres, ou seja, o que é o homem em relação com aquilo que come, com aquilo que bebe e a todo o seu regime de vida e que conseqüências derivam de cada coisa para cada um.”

As Epidemias (que significam “visitas”) mostram concreta- mente a agudeza que Hipócrates exigia da arte médica e o método do empirismo positivo em aplicação, como descrição sistemática e ordenada de várias doenças — únicos elementos sobre os quais podia se basear a arte médica.

Essa imponente obra está toda perpassada por aquele espí­rito que, como já se observou justamente, está condensado no princípio com que se abre a célebre coletânea de Aforismos:“A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugaz, o experimento arriscado, o juízo difícil.”

Por fim, devemos recordar que Hipócrates codificou a “prognose”, que, como já se observou, representa no contexto hipocrático “uma síntese de passado, presente e futuro”: somente no arco da visão do passado, do presente e do futuro do doente é que o médico pode projetar a terapia perfeita.