A Cidade e o cidadão

O bem do indivíduo é da mesma natureza que o bem da Cidade, mas este “é mais belo e mais divino” porque se amplia da dimensão do privado para a dimensão do social, para a qual o homem grego era particularmente sensível, porquanto concebia o indivíduo em função da Cidade e não a Cidade em função do indivíduo. Aristóteles, aliás, dá a esse modo de pensar dos gregos uma expressão paradigmática, definindo o próprio homem como “animal político” (ou seja, não simplesmente como animal que vive em sociedade, mas como animal que vive em sociedade politica mente organizada) e escrevendo textualmente o seguinte: “Quem não pode fazer parte de uma comunidade, quem não tem necessi­dade de nada, bastando-se a si mesmo, não é parte de uma cidade, mas é uma fera ou um deus.”

Entretanto, Aristóteles não considera “cidadãos” todos aque­les que vivem em uma Cidade e sem os quais a Cidade não poderia existir. Para ser cidadão, é preciso participar da administração da coisa pública, ou seja, fazer parte das assembléias que legislam e governam a Cidade e administram a justiça. Conseqüentemente, nem o colono nem o membro de uma cidade conquistada podiam ser “cidadãos”. E nem mesmo os operários, embora livres (ou seja, mesmo não sendo cativos ou estrangeiros), poderiam ser cidadãos, porque faltava-lhes o “tempo livre” necessário para participar da administração da coisa pública. Desse modo, os cidadãos revelam- se de número muito limitado, ao passo que todos os outros acabam, de alguma forma, sendo os meios que servem para satisfazer as necessidades dos primeiros.

Nessa questão, as estruturas sociopolíticas do momento histórico condicionam o pensamento aristotélico a ponto de levá-lo à teorização da escravidão. Para ele, o escravo é como que “um instrumento que precede e condiciona os outros instrumentos”, servindo para a produção de objetos e bens de uso, além dos serviços. E o escravo é tal “por natureza”, como decorre da seguinte passagem: “Todos os homens que diferem de seus semelhantes tanto quanto a alma difere do corpo e o homem da fera (e estão nessa condição aqueles cujos encargos implicam no uso do corpo, que é aquilo que eles têm de melhor) são escravos por natureza e, para eles, o melhor partido é submeter-se à autoridade de alguém. (...) E escravo por natureza quem pertence a alguém em potência (e, por isso, toma-se posse de alguém em ato) e participa da razão apenas naquilo que diz respeito à sensibilidade imediata, sem possuí-la propriamente, ao passo que os outros animais não possuem nem mesmo o grau de razão que compete à sensibilidade, mas obedecem às paixões. E o seu modo de emprego difere de pouco, porque tanto uns quanto outros, os escravos e os animais domésticos, são utilizados para os serviços necessários ao corpo.”

E, como os escravos eram freqüentemente prisioneiros de guerra, Aristóteles sentiu necessidade de estabelecer também que os escravos não deveriam resultar de guerras dos gregos contra os gregos, mas sim das guerras dos gregos contra os bárbaros, dado que estes são inferiores “por natureza”. E o velho preconceito racial dos helénicos que Aristóteles reafirma, pagando também neste caso um pesado tributo à sua própria época e sem ver-se como indo contra os princípios de sua própria filosofia, que se prestavam a desdobramentos em direção oposta.