As conotações essenciais da filosofia antiga

Segundo a tradição, o criador do termo “filo-sofia” foi Pitágo- ras, o que, embora não sendo historicamente seguro, no entanto é verossímil. O termo certamente foi cunhado por um espírito religioso, que pressupunha só ser possível aos deuses uma sofia (“sabedoria”), ou seja, uma posse certa e total do verdadeiro, uma contínua aproximação ao verdadeiro, um amor ao saber nunca saciado totalmente, de onde, justamente, o nome “filo-sofia”, ou seja, “amor pela sabedoria”.

Mas, substancialmente, o que entendiam os gregos por essa amada e buscada “sabedoria”?

Desde o seu nascimento, a filosofia apresentou de modo bem claro três conotações, respectivamente relativas a 1) o seu con­teúdo, 2) o seu método e 3) o seu objetivo.

1) No que se refere ao conteúdo, a filosofia pretende explicar a totalidade das coisas, ou seja, toda a realidade, sem exclusão de partes ou momentos dela. Assim, a filosofia distingue-se das ciências particulares, que assim se chamam exatamente porque se limitam a explicar partes ou setores da realidade, grupos de coisas ou de fenômenos. E a pergunta daquele que foi e é considerado como o primeiro dos filósofos — “Qual é o princípio de todas as coisas” —já mostra a perfeita consciência desse ponto. Portanto, a filosofia se propõe como objeto a totalidade da realidade e do ser. E, como veremos, alcança-se a totalidade da realidade e do ser precisa­mente descobrindo qual é o primeiro “princípio”, isto é, o primeiro “por que” das coisas.

2) No que se refere ao método, a filosofia visa ser “explicação puramente racional daquela totalidade” que tem por objeto. O que vale em filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos. Não basta à filosofia constatar, determinar dados de fato ou reunir experiências: ela deve ir além do fato e além das experiências, para encontrar a causa ou as causas precisamente através da razão.

E justamente esse caráter que confere “cientificidade” à filosofia. Pode-se dizer que esse caráter também é comum às outras ciências, que, enquanto tais, nunca são uma mera constatação empírica, mas também são pesquisa de causas e razões. A dife­rença, porém, está no fato de que, enquanto as ciências particu­lares são pesquisa racional de realidades e setores particulares, a filosofia, como dissemos, é pesquisa racional de toda a realidade (do princípio ou dos princípios de toda a realidade). Com isso, fica esclarecida a diferença entre a filosofia, arte e religião também: a grande arte e as grandes religiões também visam captar o sentido da totalidade do real, mas o fazem, respectivamente, uma com o mito e a fantasia, outra com a crença e a fé (como dissemos acima), ao passo que a filosofia procura a explicação da totalidade do real precisamente ao nível do logos.

3) Por último, o objetivo ou fim da filosofia está no puro desejo de conhecer e contemplar a verdade. Em suma, a filosofia grega é amor desinteressado pela verdade. Como escreve Aristóteles, no filosofar, os homens “buscaram o conhecer a fim de saber e não para conseguir alguma utilidade prática”. Com efeito, a filosofia só nas­ceu depois que os homens resolveram os problemas fundamentais da subsistência, libertando-se das mais urgentes necessidades materiais. E conclui Aristóteles: “Portanto, é evidente que nós não buscamos a filosofia por nenhuma vantagem estranha a ela. Aliás, é evidente que, como consideramos homem livre aquele que é fim em si mesmo, sem estar submetido a outros, da mesma forma, entre todas as outras ciências, só a esta consideramos livre, pois só ela é fim em si mesma.” E é fim em si mesma porque tem por objetivo a verdade, procurada, contemplada e desfrutada como tal. Então, pode-se compreender a afirmação de Aristóteles: “Todas as ou­tras ciências podem ser mais necessárias do que esta, mas ne­nhuma será superior.” Uma afirmação que foi adotada por todo o helenismo.

Impõe-se, porém, uma reflexão: a “contemplação” peculiar à filosofia grega não é um otium vazio. Embora não se submetendo a objetivos utilitaristas, ela possui uma relevância moral e também política de primeira ordem. Com efeito, é evidente que, ao se contemplar o todo, mudam necessariamente todas as perspectivas usuais, muda a visão do significado da vida do homem e se impõe uma nova hierarquia de valores. Em resumo, a verdade contem­plada infunde uma enorme energia moral. E, como veremos, com base precisamente nessa energia moral foi que Platão quis cons­truir o seu Estado ideal. Mas só mais adiante é que poderemos desenvolver e esclarecer adequadamente esses conceitos.

Entrementes, ficou evidente a absoluta originalidade dessa criação grega. Os povos orientais também tiveram uma “sabedo­ria” que tentava interpretar o sentido de todas as coisas (o sentido do todo) sem se submeter a objetivos pragmáticos. Mas tal sabe­doria era entremeada de representações fantásticas e míticas, o que a levava para a esfera da arte, da poesia ou da religião. Em conclusão, a grande descoberta da “filo-sofia” grega foi a de ter tentado essa aproximação ao todo fazendo uso somente da razão (do logos) e do método racional. Uma descoberta que condicionou estruturalmente, de modo irreversível, todo o Ocidente.