A alma intelectiva e o conhecimento racional

Da mesma forma que a sensibilidade não é redutível à simples vida vegetativa e ao princípio da nutrição, contendo um plus que não pode ser explicado senão introduzindo-se ulteriormente o princípio da alma sensitiva, assim também o pensa­mento e as operações a ele ligadas, como a escolha racional, são irredutíveis à vida sensitiva e à sensibilidade, contendo um plus que só pode ser explicado introduzindo-se ulteriormente outro princípio: o da alma racional. É dela que falaremos agora.

O ato intelectivo é análogo ao ato perceptivo, porque é um receber ou assimilar as “formas inteligíveis” da mesma forma que o ato perceptivo é um assimilar as “formas sensíveis”, mas difere profundamente dele, visto que não se mistura ao corpo e ao corpóreo: “O órgão dos sentidos não existe sem o corpo, enquanto a inteligência existe por sua própria conta.”

Assim como o conhecimento perceptivo, Aristóteles também explica o conhecimento intelectivo em função das categorias meta­físicas de potência e ato. Por si mesma, a inteligência é capacidade e potência de conhecer as formas puras; por seu turno, as formas estão contidas em potência nas sensações e nas imagens da fantasia; é necessário, portanto, algo que traduza em ato essa dupla potencialidade, de modo que o pensamento se concretize captando a forma em ato e que a forma contida na imagem tome-se conceito possuído em ato. E, desse modo, surgiu aquela distinção que se tomou fonte de inumeráveis problemas e discussões, tanto na Antigüidade como na Idade Média, entre “intelecto potencial” e “intelecto atual”, ou, para usar a terminologia que iria se tomar técnica (mas que só está presente potencialmente em Aristóteles), entre intelecto possível e intelecto ativo. Leiamos a página que contém essa distinção, porque ela permaneceu durante séculos como um constante ponto de referência: “Como em toda a natureza há algo que é matéria e que é próprio a cada gênero de coisas (e isso é aquilo que, em potência, é todas aquelas coisas) e algo distinto que é causa eficiente, enquanto as produz a todas, como faz, por exemplo, a arte com a matéria, é necessário que também na alma existam essas diferenciações. Assim, há um intelecto potencial, enquanto se toma todas as coisas, e há um intelecto agente, enquanto as produz a todas, que é com que um estado semelhante à luz: com efeito, em certo sentido, também a luz toma as cores em potência cores em ato. E esse intelecto é separado, impassível, não misturado e intacto por sua essência: efetivamente, o agente é sempre superior ao paciente e o princípio é superior à matéria (...). Separado (da matéria), ele é somente aquilo que precisamente é e somente ele é imortal e eterno (...).”

Aristóteles, portanto, diz expressamente que esse intelecto ativo está “na alma”. Assim, caem por terra as interpretações defendidas desde os mais antigos intérpretes de seu pensamento no sentido de que o intelecto agente é Deus (ou, de qualquer forma, um Intelecto divino separado). E verdade que Aristóteles afirma que “o intelecto vem de fora e somente ele é divino”, ao passo que as facilidades inferiores da alma já existem em potência no germe masculino e, através dele, passam para o novo organismo que se forma no seio materno. Mas também é verdade que, mesmo vindo “de fora”, ele permanece “na alma” durante toda a vida do homem. A afirmação de que o intelecto “vem de fora” significa que ele é irredutível ao corpo por sua natureza intrínseca e que, portanto, é transcendente ao sensível. Significa que há em nós uma dimensão meta-empírica, supra-física e espiritual. E isso é o divino em nós.

Mas, embora não sendo Deus, o intelecto agente reflete as características do divino, sobretudo a sua absoluta impassibili­dade, como diz Aristóteles nesta passagem exemplar: “Mas parece que o intelecto está em nós como uma realidade substancial, que não se corrompe. Com efeito, se se corrompesse, deveria corromper- se pelo enfraquecimento da velhice. No entanto, ocorre aquilo que acontece aos órgãos sensoriais: se um velho recebesse um olho adequado, veria do mesmo modo que um jovem. Portanto, a velhice não se deve a uma alteração sofrida pela alma, mas sim do sujeito em que se encontra a alma, como acontece nos estados de em­briaguez e nas doenças. A atividade do pensar e do especular se enfraquece quando uma outra parte, no interior do' corpo, se desgasta, mas ela, por si mesma, é impassível. O raciocinar, o amar ou o odiar não são alterações do intelecto, mas sim do sujeito que possui o intelecto, precisamente porque possui o intelecto. Por isso, quando esse sujeito perece, já não recorda e não ama: com efeito, recordar e amar não são próprios do intelecto, mas sim do composto que pereceu — o intelecto é algo de mais divino e impassível

Na Metafísica, depois de adquirido o conceito de Deus com as características que vimos, Aristóteles não conseguiu resolver as numerosas aporias que essa aquisição comportava. E aqui, da mesma forma, adquirido o conceito do espiritual que está em nós, ele também não conseguiu resolver as inúmeras aporias que daí derivam. Esse intelecto é individual? Como pode ele vir “de fora”? Que relação ele tem com a nossa individualidade e o nosso eu? E que relação tem com o nosso comportamento moral? Ele está com­pletamente subtraído a qualquer destino escatológico? E que sentido tem o seu sobreviver ao corpo?

Algumas dessas interrogações não foram nem sequer pro­postas por Aristóteles. Contudo, estariam destinadas a ficar estrutu­ralmente sem resposta: para serem propostas na ordem-do-dia e, sobretudo, para serem adequadamente resolvidas, essas questões teriam exigido a aquisição do conceito de criação, o qual, como sabemos, é estranho não apenas a Aristóteles, mas também ao mundo grego.