A problemática relativa à substância

Com base no que foi dito, pode-se muito bem compreender por que Aristóteles também define a metafísica simplesmente como “teoria da substância”. E compreende-se também o motivo pelo qual a problemática da substância revela-se a mais complexa e espinhosa, precisamente pelo fato de ser a substância o eixo em tomo do qual giram todos os significados do ser.

Aristóteles considera que os principais problemas relativos à substância são dois. 1) Que substâncias existem? Existem só substâncias sensíveis (como sustentam alguns filósofos) ou tam­bém substâncias supra-sensíveis (como sustentam outros filóso­fos)? 2) O que é a substância em geral, ou seja, o que se deve entender quando se fala de substância em geral? Em última análise, a questão a que se deve responder é a primeira; entretanto, é preciso começar respondendo à segunda questão porque “todos admitem que algumas das coisas sensíveis são substâncias” e porque é metodologicamente oportuno “começar por aquilo quepara nós é mais evidente” (e que, portanto, todos admitem) para, depois, seguir para aquilo que para nós, homens, é menos evidente (mesmo que em si e por si, ou seja, pela sua natureza, seja mais cognoscível).

O que é, então, a substância em geral? 1) Os naturalistas apontam os elementos materiais como o princípio substancial. 2) Os platônicos indicavam a Forma. 3) Para os homens comuns, no entanto, a substância pareceria ser o indivíduo e a coisa concreta, feitos a um só tempo de forma e matéria. Quem tem razão? Segundo Aristóteles, ao mesmo tempo, todos e nenhum têm razão, no sentido de que, tomadas singularmente, essas respostas são par­ciais, ou seja, unilaterais, mas, em seu conjunto, nos dão a verdade.

1) A matéria (hyle) é, indubitavelmente, um princípio cons­titutivo das realidades sensíveis, porque funciona como “substra­to” da forma (a madeira é substrato da forma do móvel, a argila da taça etc.). Se eliminássemos a matéria, eliminaríamos todas as coisas sensíveis. Mas, em si, a matéria é potencialidade indeter­minada, podendo tomar-se algo de determinado somente se receber a determinação por meio de uma forma. Assim, só impropriamente a matéria é substância.

2) Já a forma, enquanto princípio que determina, concretiza e realiza a matéria, constitui aquilo “que é” alguma coisa, a sua essência, sendo assim substância a pleno título (Aristóteles usa as expressões “o que é” e “o que era o ser”, que os latinos traduziriam por quod quid est, quod quid erat esse, e sobretudo a palavra eidos, “forma”). Não se trata, porém, da forma como a entendia Platão (a forma hiperurânica transcendente), mas sim de uma forma que é como um constitutivo intrínseco da própria coisa (é forma-na- matéria).

3) Mas o composto de matéria e forma, que Aristóteles chama “sinolo” (que significa precisamente o conjunto ou o todo consti­tuído de matéria e forma), também é substância a pleno título, porque reúne tanto a “substancialidade” do princípio material quanto a do formal.

Sendo assim, alguns acreditaram poder concluir que a “substância primeira” é precisamente o “sinolo” e o indivíduo, • sendo a forma a “substância segunda”. Mas essas afirmações, que podem ser lidas na obra Categorias, são contrariadaspelaMetafísica, onde se pode ler expressamente: “Chamo de forma a essência de cada coisa e a substância primeira.”

De resto, o fato de que, em certos textos, Aristóteles parece considerar o indivíduo e o “sinolar” concreto como substância por excelência, ao passo que em outros textos, parece considerar a for­ma como substância por excelência constitui apenas aparentemente uma contradição. Com efeito, conforme o ponto de vista a partir do qual nos colocamos, devemos responder do primeiro ou do segundo modo. Do ponto de vista empírico e de constatação, é claro que o synolos(conjunto) ou o indivíduo concreto parece ser substância por excelência. O mesmo já não acontece, porém, do ponto de vista estritamente teorético e metafísico: com efeito, a forma é princípio, causa e razão de ser, ou seja, fundamento. Em relação a ela, sinolo é principiado, causado e fundado. Ora, nesse sentido, a forma é substância por excelência e no mais alto título. Em resumo, quoad nos, o concreto é substância por excelência; em si e por natureza, a forma é que é substância por excelência. Por outro lado, se o sinolo exaurisse o conceito de substância enquanto tal, nada que não fosse sinolo seria pensável como substância e, desse modo, tanto Deus como o imaterial e o supra-sensível em geral não poderiam ser substância e, conseqüentemente, a questão de sua existência estaria prejudicada desde o ponto de partida.

Para concluir, podemos dizer que, desse modo, o sentido do ser fica plenamente determinado. Em seu significado mais forte, o ser é a substância; a substância, em um sentido (impróprio), é matéria, em um segundo sentido (mais próprio) é “sinolo" e em um terceiro sentido (e por excelência) é forma; o ser, portanto, é a matéria; em um grau mais elevado, o ser ésinolo; e, no sentido mais forte, o ser é a forma. Desse modo, pode-se compreender por que Aristóteles chegou a chamar a forma até mesmo de “causa primeira do ser” (precisamente porque ela “enforma” a matéria e funda o sinolo).