O ser e seus significados

A segunda definição de metafísica, como vimos, é dada por Aristóteles numa linha ontológica: “Há uma ciência que considera o ser enquanto ser e as propriedades que lhe cabem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma das ciências particulares: com efeito, nenhuma das outras ciências considera o ser enquanto ser universal, mas sim, depois de delimitar uma parte dele, cada uma estuda as características dessa parte.” Assim, a metafísica consi­dera o ser como “inteiro”, ao passo que as ciências particulares consideram somente partes dele. A metafísica pretende chegar às “causas primeiras do ser enquanto ser”, ou seja, ao por quê que explica a realidade em sua totalidade; já as ciências particu­lares se detêm nas causas particulares, nas partes específicas da realidade.

Mas o que é o ser? Parmênides e os eleáticos o entendiam como “unívoco”. E a univocidade comporta também a “unicidade”. Platão já havia realizado um grande progresso ao introduzir o conceito de “não-ser” como “diverso”, o que permitia justificar a multiplicidade dos seres inteligíveis. Mas Platão ainda não tivera a coragem de colocar na esfera do ser também o mundo sensível, que preferiu denominar “intermediário” (metaxy entre ser e não- ser (porque está em devir). Ora, Aristóteles introduziu uma grande reforma, que implica na superação total da ontologia eleática: o ser não tem apenas um, mas múltiplos significados. Tudo aquilo que não é um puro nada encontra-se a pleno título na esfera do ser, seja uma realidade sensível, seja uma realidade inteligível. Mas a mul­tiplicidade e variedade de significados do ser não comporta uma pura “homonímia”, porque cada um e todos os significados do ser implicam “uma referência comum a uma unidade”, ou. seja, uma “referência à substância” estrutural. Portanto, o ser é substância, alteração da substância ou atividade da substância — de qualquer modo, algo-que-reporta-à-substância.

Mas Aristóteles também procurou redigir uma tábua que reunisse todos os significados possíveis do ser, distinguindo quatro grupos fundamentais de significados: 1) o ser como categorias (o ser em si); 2) o ser como ato epotência;3) o ser como acidente; 4) o ser como verdadeiro (e não como falso).

1) As categorias representam o grupo principal dos signifi­cados do ser e constituem as originárias “divisões do ser” ou, como também diz Aristóteles, os supremos “gêneros do ser”. Eis a tábua das categorias:

1. substância ou essência;

2. qualidade;

3. quantidade;

4. relação;

5. ação ou agir;

6. paixão ou sofrer;

7. onde ou lugar;

8. quando ou tempo;

9. ter;

10. jazer.

Colocamos as últimas duas entre parênteses porque Aristó­teles fala pouquíssimas vezes delas (talvez tenha querido alcançar o número dez em homenagem à década pitagórica; mas, mais das vezes, ele faz referência a oito categorias). Deve-se destacar que, embora se trate de significados originários, somente a primeira categoria tem uma subsistência autônoma, enquanto todas as outras pressupõem a primeira e baseiam-se no ser da primeira (a “qualidade” e a “quantidade” são sempre de uma substância,as “relações” são relações entre substâncias e assim por diante).

2) Também o segundo grupo de significados, ou seja, o do ato e da potência, é muito importante. Com efeito, eles são originários e, portanto, não podem ser definidos em referência a outra coisa, mas apenas em relação mútua um com o outro e ilustrados com exemplos. Há uma grande diferença entre o cego e quem tem os olhos sadios, mas os mantém fechados: o primeiro não é “vidente”; o segundo é, mas “em potência” e não “em ato”, pois só quando abre os olhos é “em ato”. Do mesmo modo, dizemos que a plantinha de trigo “é” trigo “em potência”, ao passo que a espiga madura “é” trigo “em ato”. Como veremos, essa distinção desempenha um papel essencial no sistema aristotélico, resolvendo váriasaporias em

diversos âmbitos. A potência e o ato (e esta é uma observação que se deve ter sempre em conta) se dão em todas as categorias (podem ser em potência ou em ato uma substância, uma qualidade etc.).

3) O ser acidental é o ser casual e fortuito (aquilo que “acontece de ser”). Trata-se de um modo de ser que não apenas depende de outro ser como também não está ligado a ele por nenhum vínculo essencial (por exemplo, é um puro “acontecer” que eu esteja sentado, pálido etc., em dado momento). Portanto, é um tipo de ser que “não é sempre nem o mais das vezes”, mas somente “às vezes”, casualmente.

4) O ser como verdadeiro é aquele tipo de ser próprio da mente humana que pensa as coisas e sabe conjugá-las como elas estão conjugadas na realidade ou separá-las quando elas estão separa­das. O ser (ou melhor, o não-ser) como falso é quando a mente conjuga aquilo que não está conjugado ou separa aquilo que não está separado na realidade.

Este último tipo de ser é estudado na lógica. Do terceiro não existe ciência, porque a ciência não se volta para o fortuito, mas só para o necessário. A metafísica estuda sobretudo os primeiros dois grupos de significados. Mas, como todos os significados do ser giram em tomo do significado central da substância, como vimos, é a metafísica que deve se ocupar sobretudo da substância: “Em verdade, aquilo que, desde os tempos antigos, como agora e sempre, constitui o eterno objeto de busca ou o etemo problema, ‘o que é o ser?’,equivale a indagar ‘o que é a substância?’ (...); por isso, também nós, principal, fundamental e unicamente, por assim dizer, devemos examinar o que é o ser entendido nesse significado.”