Problemas relativos à substância supra-sensível

Demonstrada a existência da substância supra-sensível, restam ainda, para concluir, três questões a serem resolvidas: 1) qual é a natureza dessa substância; 2) se existe uma só ou são muitas; 3) quais são as suas relações com o sensível.

1) Esse Princípio do qual “dependem o céu e a natureza” é Vida. Mas que vida? Aquela que é mais excelente e perfeita do que todas, aquela vida que só nos é possível por breve tempo: a vida do pensamento puro, a vida da atividade contemplativa. Eis a estu­penda passagem em que Sócrates descreve a natureza do Motor Imóvel: “De tal princípio, portanto, dependem o céu e a natureza. E o seu modo de viver é o mais excelente: é aquele modo de viver que só nos é concedido por breve tempo. E Ele está sempre nesse estado. Para nós, isso é impossível, mas para Ele não é impossível, porque o ato do seu viver é prazer. Também para nós são suma­mente agradáveis a vigília, a sensação e o conhecimento, precisa­mente porque são ato e, em virtude disso, também esperanças e recordações. (...) Assim, se nessa feliz condição em que por vezes nos encontramos Deus se encontra perenemente, isso é maravi­lhoso; e, se ele se encontra em uma condição superior, é ainda mais maravilhoso. E Ele efetivamente se encontra nessa condição. E Éle também é Vida, porque a atividade da inteligência é vida e Ele é precisamente essa atividade. E sua atividade, que subsiste por si mesma, é vida ótima e eterna. Com efeito, dizemos que Deus é vivo, eterno e ótimo, de modo que a Deus pertence uma vida perene­mente contínua e eterna: isso, portanto, é Deus.”

Mas o que pensa Deus? Deus pensa o que é mais excelente. E a coisa mais excelente é o próprio Deus. Deus, portanto, pensa a si mesmo, é atividade contemplativa de si mesmo: “é pensamento de pensamento”. Eis as afirmações precisas do filósofo: “O pensa­mento que é pensamento por si mesmo tem como objeto aquilo que é por si mesmo mais excelente. E o pensamento que assim é em grau máximo tem por objeto aquilo que é excelente em máximo grau. A inteligência pensa a si mesma, captando-se como inteligível: com efeito, ela toma-se inteligível intuindo e pensando a si mesma, de modo que inteligência e inteligível coincidem. A inteligência, com efeito, é aquilo que é capaz de captar o inteligível e.a substância, estando em ato quando os possui. Portanto, mais ainda do que aquela capacidade, é esta posse que a inteligência tem de divino; e a atividade contemplativa é aquilo que há de mais agradável e mais excelente. Assim, se a Inteligência divina é aquilo que existe de mais excelente, ela pensa a si mesma e o seu pensamento é pensamento de pensamento.”

Deus, portanto, é eterno, imóvel, ato puro, privado de poten­cialidade e de matéria, vida espiritual e pensamento de pensa­mento. E, sendo assim, obviamente, “não pode ter nenhuma grandeza”, devendo ser “sem partes e indivisível”. E também deve ser “impassível e inalterável”.

2) Essa substância é única ou haverá outras, afins a ela? Aristóteles não acreditava que, por si só, o Motor Imóvel bastasse para explicar o movimento de todas as esferas de que ele pensava que o céu fosse constituído. Uma só esfera move as estrelas fixas, que, com efeito, têm um movimento regularíssimo. Mas, entre elas e a terra, existem outras 55 esferas, que se movem com movimentos diferentes, os quais, combinando-se de vários modos, deveriam explicar os movimentos dos astros. Essas esferas são movidas por Inteligências análogas ao Motor imóvel, mas inferiores a Ele; aliás, uma sendo inferior à outra, assim como são hierarquicamente inferiores umas às outras as esferas que se encontram entre-a esfera das estrelas fixas e a terra.

Será essa uma forma de politeísmo?

Para Aristóteles, assim como para Platão e, geralmente, para os gregos, o Divino designa uma ampla esfera, na qual, a diversos títulos, têm lugar múltiplas e diferentes realidades. Já para os naturalistas o Divino incluía estruturalmente muitos entes. E o mesmo vale para Platão. Analogamente, para Aristóteles, o Motor Imóvel é divino, como também são divinas as substâncias supra- sensíveis e imóveis motrizes dos céus e também é divina a alma intelectiva dos homens — divino é tudo aquilo que é eterno e incorruptível.

Estabelecida essa premissa, devemos dizer que é inegável uma certa tentativa de unificação realizada por Aristóteles. Antes de mais nada, ele só chamou explicitamente o Primeiro Motor com o termo “Deus” em sentido forte, reafirmando sua unicidade e deduzindo dessa unicidadetambém a unicidade do mundo. O décimo-segundo livro daMetafísica se conclui com a solene afir­mação de que as coisas não querem ser mal governadas por uma multiplicidade de princípios, afirmação que é inclusive selada pelo significativo verso de Homero: “Não é bom o governo de muitos; seja só um o comandante.”

Em Aristóteles, portanto, há um monoteísmo mais “exigencial” do que efetivo. “Exigencial” porque ele procurou separar claramente o Primeiro Motor dos outros, colocando-o num plano inteiramente diverso, a ponto de poder legitimamente chamá-lo “único” e de sua unicidade deduzir aunicidade do mundo. Por outro lado, essa exigência se rompe, porque as cinqüenta e cinco subs­tâncias motrizes, da mesma forma, são substâncias eternas e imateriais, que não dependem do Primeiro Motor quanto ao seu ser. O Deus aristotélico não é o criador das cinqüenta e cinco inteligências motrizes. E daí nascem todas as dificuldades sobre as quais raciocinamos. Ademais, o Estagirita deixou completamente inexplicada a precisa relação existente entre Deus e essas subs­tâncias, bem como as esferas que elas movem. A Idade Média iria transformar essas substâncias nas célebres “inteligências angéli­cas” motrizes, mas, precisamente, só conseguiu operar essa trans­formação em virtude do conceito de criação.

3) Deus pensa a si mesmo, mas não as realidades domundo e os homens singularmente, que são coisas imperfeitas e mutáveis. Para Aristóteles, com efeito, “é absurdo que a inteligência divina pense certas coisas”: “ela pensa aquilo que é mais divino e mais digno de honra e o objeto do seu pensar é aquilo que não muda”. Essa limitação do Deus aristotélico deriva do fato de que ele não criou o mundo, mas foi muito mais o mundo que, em certo sentido, se produziu tendendo para Deus, atraído pela perfeição.

Uma outra limitação do Deus aristotélico, que tem o mesmo fundamento da anterior, consiste no fato de que ele é objeto de amor, mas não ama (ou, quando muito, ama a si mesmo). Enquanto tais, os indivíduos não são objeto do amor divino: Deus não se volta para os homens e menos ainda para cada homem individualmente. Cada um dos homens, assim como cada uma das coisas, tende de modos variados para Deus; mas Deus, como não pode conhecer, também não pode amar nenhum dos homens individualmente. Em outros termos: Deus é só amado e não, também, amante; ele é só objeto e não, também, sujeito de amor. Para Aristóteles, assim como para Platão, é impensável que Deus (o Absoluto) ame alguma coisa (algo que não seja ele), dado que o amor é sempre “tendência a possuir algo de que se é privado” e Deus não está privado de nada. (A dimensão do amor como dom gratuito de si mesmo era to­talmente desconhecida para os gregos.) Além disso, Deus não pode amar porque é inteligência pura e, segundo Aristóteles, a inte­ligência pura é “impassível” e, como tal, não ama.