Considerando a concepção arcaica aritmético-geométrica do número de que falamos, não será difícil compreender como os pitagóricos puderam deduzir as coisas e o mundo físico do número. Com efeito, os números eram concebidos como pontos, ou seja, como massas, e consequentemente eram concebidos como sólidos — assim, era óbvia a passagem do número para as coisas físicas.
E tudo isso toma-se ainda mais claro quando pensamos que o pitagorismo primitivo representava a antítese originária entre ilimitado e limitante num sentido cosmogônico: o ilimitado é o vazio que circunda tudo e o mundo nasce através de uma espécie de “inspiração” desse vazio por parte de um Um (cuja gênese não é bem especificada). O vazio, que entra com a inspiração, e a determinação que o Um produz ao inspirá-lo dão origem às-várias coisas e aos vários números. Trata-se de tuna concepção que lembra fortemente alguns pensamentos de Anaximandro e Anaxímenes. E, assim, mostra a continuidade, embora na diferença, dessa primeira filosofia dos gregos.
Parece que Filolau fez coincidir os quatro elementos com os primeiros quatro sólidos geométricos (terra = cubo, fogo = pirâmide, ar = octaedro e água = icosaedro). E isso é inteiramente coerente com as premissas do sistema (nessa identificação, também devem ter desempenhado um papel notável as analogias sensíveis: o cubo dá idéia de solidez da terra, a pirâmide lembra as línguas de fogo etc.).
Mas tudo isso leva a uma ulterior conquista fundamental: se o número é ordem (“acordo entre elementos ilimitados e limitados”) e se tudo é determinado pelo número, então tudo é ordem. E como “ordem” se diz “Kósmos” em grego, os pitagóricos chamaram o universo de “cosmos”, ou seja, “ordem”. Dizem os nossos testemunhos antigos: “Pitágoras foi o primeiro a denominar de ‘.cosmos’ o conjunto de todas as coisas, pela ordem que há nele. (...) Os sábios (pitagóricos) dizem que céu, terra, deuses e homens são mantidos juntos pela ordem (...) e é precisamente por tal razão que eles chamam esse todo de ‘cosmos’, ou seja, ordem.”
E dos pitagóricos a ideia de que girando, precisamente segundo o número e a harmonia, os céus produzem “uma celeste música de esferas, belíssimas consonâncias, que os nossos ouvidos não percebem ou não sabem mais distinguir porque estão habituados desde sempre a ouvi-la”.
Com os pitagóricos, o pensamento humano realizou um passo decisivo: o mundo deixou de ser dominado por obscuras e indecifráveis forças, tomando-se número, que expressa ordem, racionalidade e verdade. Como afirma Filolau: “Todas as coisas que se conhecem têm número: sem este, não seria possível pensar nem conhecer nada. (...) Jamais a mentira sopra em direção ao número.”
Com os pitagóricos, o homem aprendeu a ver o mundo com outros olhos, ou seja, como uma ordem perfeitamente penetrável pela razão.