O “cânon” epicureu

Epicuro adota substancialmente a tripartição senocrática da filosofia em “lógica”, “física” e “ ética”. A primeira deve elaborar os canônes segundo os quais reconhecemos a verdade; a segunda estuda a constituição do real; a terceira, o fim do homem (a felicidade) e os meios para alcançá-la. A primeira e a segunda são elaboradas só em função da terceira.

Platão afirmara que a sensação confunde a alma e desvia do ser. Epicuro precisamente inverte essa posição, afirmando que, ao contrário, a sensação e somente ela “colhe o ser” de modo infalível. Nunca nenhuma sensação pode falhar. Diz Cícero: “A tal linha chega Epicuro ao dizer que, se uma sensação, uma única vez na vida, devesse induzir ao erro, não existiria mais possibilidade de se acreditar em nenhuma sensação”; “Epicuro temia que, se uma única sensação se revelasse mentirosa, mais nenhuma pudesse ser dita verdadeira. E chamava os sentidos de: ‘mensageiros do ver­dadeiro’ ”. Os argumentos que Epicuro apresentava para provar a veracidade absoluta de todas as sensações são os seguintes:

1) Em primeiro lugar, a sensação é uma “alteração” e, em conseqüência, passiva; como tal, é produzida por alguma coisa da qual é o efeito correspondente e adequado.

2) Em segundo lugar, a sensação é objetiva e verdadeira, porque é produzida e garantida pela própria estrutura atômica da realidade (da qual falaremos adiante). De todas as coisas emanam complexos de átomos, que constituem “imagens ou simulacros”, e as sensações são exatamente produzi­das pela penetração, em nós, de tais simulacros. As sensações são registros objetivos dos simulacros tais como eles são, mesmo aqueles que erroneamente são considerados ilusões dos sentidos, como as diferentes formas segundo as quais um objeto aparece, segundo o lugar ou a distância em que nos encontramos dele. De fato, o simulacro do objeto próximo é efetivamente diverso daquele que está distante; assim, em vez de estabelecer a prova, segundo alguns, de que os sentidos se enganam, é prova de sua objetividade.

3) Finalmente, a sensação é a-racional e, em conseqüência, incapaz de retirar ou acrescentar a si mesma alguma coisa, sendo, pois, objetiva.

Como segundo “critério” de verdade, Epicuro colocava as “prolepses”, “antecipações” ou “pré-noções”, que são as representa­ções mentais das coisas, as quais não são senão “memória daquilo que freqüentemente mostrou-se do exterior”. A experiência deixa, pois, na mente uma “impressão” das sensações passadas e essa “impressão” permite-nos conhecer antecipadamente as caracterís­ticas das coisas correspondentes mesmo sem tê-las atualmente presentes ou, para dizê-lo em outros termos, “antecipamos” quais características as coisas terão quando a sensação colocá-las-á novamente diante de nós. Logo, a prolepse antecipa a experiência somente porque e enquanto ela foi produzida pela experiência. Os “nomes” são expressões “naturais” dessas prolepses e, em conseqüência, constituem também uma manifestação natural da ação originária das coisas sobre nós.

Como terceiro critério de verdade, Epicuro coloca os senti­mentos de “prazer” e “dor”. As sensações do prazer e da dor são objetiveis pelas mesmas razões que o são todas as sensações. Têm, todavia, uma importância inteiramente particular porque, além de critério para distinguir o verdadeiro do falso, o ser do não-ser, como todas as outras sensações, constituem o critério axiológico para distinguir o *bem ” do “mal”, constituindo assim o critério de escolha ou da não escolha, ou seja, a regra do nosso agir.

As sensações e prolepses e os sentimentos de prazer e dor têm uma característica comum que garante seu valor de verdade, a qual consiste na evidência imediata. Portanto, desde que firmemos a evidência e acolhamos como verdadeiro o que é evidente, não podemos errar, porque a evidência é sempre dada a partir da ação direta que as coisas exercem sobre nosso espírito. “Evidente” no sentido estrito é, então, só aquilo que é imediato, como as sensações, as antecipações e os sentimentos. Mas, uma vez que o raciocínio não pode apoiar-se no imediato, sendo operação de mediação, assim nasce a opinião e, com ela, a possibilidade do erro. Portanto, enquanto as sensações, as prolepses e os sentimentos são sempre verdadeiros, as opiniões poderão ser ora verdadeiras, ora falsas. Por isso, Epicuro procurou determinar os critérios com base nos quais pode-se distinguir as opiniões verdadeiras das falsas.

São verdadeiras as opiniões que: a) “recebem testemunho comprobatório”, isto é, confirmação por parte da experiência e da evidência e b) “não recebem testemunho contrário”, ou seja, não recebem desmentido da experiência e da evidência; por sua vez, são falsas as opiniões que a) “recebem testemunho contrário”, ou seja, são desmentidas pelas experiências e pela evidência e b) “não recebem testemunho probante”, ou seja, não recebem confirmação da experiência e da evidência.

E de se notar que a evidência permanece sempre o parâmetro com base no qual se mede e reconhece a verdade, mas é, somente uma evidência empírica: é a evidência tal como aparece aos sentidos e não tal como aparece à razão. Mais do que nunca são aqui relevantes as pesadas hipotecas sensísticas do cânone epicureu que o tomam inadequado e insuficiente quanto às exigências para a construção da própria física epicúreia. De fato, os conceitos-base da física epicúreia, como os “átomos”, o “vazio” e a “queda dos átomos”, não são coisas evidentes por si, pelo motivo de que não são sensorialmente aceitáveis. Mas, diz Epicuro, são coisas não evidentes, supostas e opinadas para explicar os fenômenos e de acordo com os fenômenos. Mas, evidentemente, Epicuro está bem longe de poder demonstrar que os átomos, o vazio e a queda sejam as únicas coisas que podemos supor para explicar os fenômenos, porque outros princípios, inteiramente diversos destes, poderiam igualmente se vangloriar da “falta de testemunho contrário” por parte da experiência.

Recordemos, enfim, que há tempos os estudiosos revelaram que, a partir da afirmação de que todas as sensações são verda­deiras, pode-se deduzir tanto o objetivismo absoluto, como faz Epicuro, como o subjetivismo absoluto, como fazia Protágoras. A verdade é que tanto a física como a ética epicúreia, em todo caso, vão muito além daquilo que o cânone que vimos permitiria sozinho.