A física epicuréia

Por que é necessário elaborar uma física ou ciência da natureza, da realidade em seu conjunto? Epicuro responde: “Se não nos perturbasse o pavor dos fenômenos celestes e da morte, algo que nos toca de perto, e se não nos perturbasse o desconhecimento dos limites dos prazeres e das dores, não teríamos necessidade da ciência da natureza.” O que significa que a física deve ser feita para dar fundamento à ética.

A “física” de Epicuro é uma ontologia, uma visão geral da realidade em sua totalidade e em seus princípios últimos. Epicuro, na verdade, não sabe criar uma nova ontologia: para expressar a própria visão materialista da realidade de modo positivo (ou seja, não negando simplesmente a tese platônico-aristotélica), remete a conceitos e figuras teoréticas já elaboradas no âmbito da filosofia pré-socrática. E, entre todas as perspectivas pré-socráticas, era quase inevitável que Epicuro escolhesse a dos atomistas, exata­mente porque, essa depois da “segunda navegação” platônica, revelava-se a mais materialista de todas. Mas o atomismo, como vimos, é uma resposta precisa às aporias levantadas pelo eleatismo, uma tentativa de mediar as instâncias opostas do logos eleático, por um lado, e da experiência, por outro. Grande parte da lógica eleática passa pela lógica do atomismo (Lêucipo, o primeiro atomista, foi discípulo de Melissos e, em geral, o atomismo, entre as propostas pluralistas, foi a mais rigorosamente eleática). Em conseqüência, era inevitável que também estivesse presente em Epicuro.

Os fundamentos da física epicúreia podem ser enucleados e formulados como segue:

a) “Nada nasce no não-ser”, porque, de outro modo, tudo poderia absurdamente gerar-se de qualquer coisa, sem neces­sidade de nenhum elemento gerador; e nenhuma coisa “dissolve- se no nada”, porque, de outro modo, neste momento, tudo pereceria e nada mais existiria. E, dado que nada nasce e nada perece, assim o todo, isto é, a realidade em sua totalidade, sempre foi como é agora e sempre será assim; com efeito, além do todo, não existe nada em que ele possa mudar-se, nem existe nada do qual possa provir^

b) Esse “todo”, ou seja, a totalidade da realidade, é deter­minado por dois componentes essenciais: os corpos e o vazio. A existência dos corpos é provada pelos próprios sentidos, enquanto a existência do espaço e do vazio é inferida pelo fato de que existe movimento. Com efeito, para que exista movimento, é necessário que exista um espaço vazio no qual os corpos possam deslocar-se. •O vazio não é absoluto não-ser, mas exatamente “espaço” ou, como diz Epicuro, “natureza intangível”. Além dos corpos e do vazio tertium non datur, porque não seria pensável nada que exista por si mesmo e não seja alteração dos corpos.

c) Tal como é concebida por Epicuro, a realidade é infinita. Em primeiro lugar, é infinita como totalidade. Mas é evidente que, para que tudo possa ser infinito, cada um dos seus princípios constitutivos também deve ser infinito: infinita deverá ser a multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio (se a multidão dos corpos fosse finita, eles se perderiam no vazio infinito e, se o vazio fosse finito, não poderia acolher corpos infinitos. O conceito de infinito toma, assim, a se impor, contra as concepções platôni­cas e aristotélicas.

d) Alguns “corpos” são compostos; outros, ao contrário, são simples e absolutamente indivisíveis (átomos). A admissão do átomo toma-se necessária porque, caso contrário, seria preciso admitir uma divisibilidade dos corpos ao infinito, a qual, no limite, conduziria à dissolução das coisas no não-ser, o que, como sabemos, é absurdo.

A concepção do átomo de Epicuro difere de visão dos antigos atomistas (Lêucipo e Demócrito) em três pontos fundamentais.

1) Os antigos atomistas indicavam como características essenciais do átomo a “figura”, a “ordem” e a “posição”. Epicuro, por sua vez, indica como características essenciais a “figura”, o “peso” e a “grandeza”. As formas diferentes dos átomos (que não são somente formas regulares de caráter geométrico, mas formas de toda espécie e tipo, sendo em todo caso, sempre e só formas quantitativas diferentes e não qualitativamente diversas, como as formas platônicas e aristotélicas, dado que os átomos são todos de idêntica natureza) resultam necessárias para explicar as diversas qualidades fenomênicas das coisas que nos aparecem. O mesmo vale também para a grandeza dos átomos (o peso, porém, como veremos melhor adiante, é necessário para explicar o movimento dos átomos). As formas atômicas devem ser diversas e numerosís­simas, mas não infinitas (para ser infinitas, deveriam poder variar sua grandeza ao infinito; mas, então, tomar-se-iam visíveis, o que não acontece), ao passo que o número dos átomos em geral é infinito.

2) Uma segunda diferença consiste na introdução da teoria dos “mínimos”. Segundo Epicuro, todos os átomos, dos maiores aos menores, são física e ontologicamente indivisíveis; todavia, o fato mesmo de serem “corpos” dotados de figura e, conseqüentemente, de extensão e grandezas diversas (embora no âmbito dos dois limites que assinalamos) implica que eles teriam partes. (Se assim não fosse, não existiria sentido algum em falar de átomos pequenos e átomos grandes.) Obviamente, trata-se de “partes” não sepa­ráveis ontologicamente, mas apenas lógica e idealmente distin­guíveis, porque o átomo é estruturalmente indivisível. E mesmo a grandeza dessas “partes” do átomo, pela mesma razão eleática em virtude da qual é impossível que os átomos diminuam de grandeza ao infinito, deve-se deter em um limite que Epicuro chama exa­tamente de “mínimo” e que, como tal constitui a unidade da medida. Epicuro — note-se — fala dos “mínimos” não só referindo- se aos átomos, mas também ao espaço (ao vazio), ao tempo, ao movimento e à “queda” dos átomos (de que falaremos adiante). Em todos os casos, os “mínimos” constituem a unidade de medida analógica.

3) A terceira diferença diz respeito à concepção do movimento originário dos átomos. Epicuro entende este movimento não como aquele voltejar em todas as direções do qual falavam os antigos atomistas, mas como um movimento de queda para baixo no espaço infinito, devido ao peso dos átomos, com um movimento tão veloz quanto o pensamento e igual para todos os átomos, quer sejam pesados, quer leves. Tal correção da concepção do antigo atomismo resulta num híbrido bastante infeliz, porque demonstra de modo claríssimo o quanto o pensamento sobre o infinito está irremedia­velmente comprometido pelo “sensismo”, que não sabe livrar-se da representação empírica do alto e do baixo (que são conceitos relativos ao finito). Mas como então os átomos não caem segundo linhas paralelas, no infinito, sem nunca se tocar? Para resolver a dificuldade, Epicuro introduz a teoria da “declinação” dos átomos (clinámen), segundo a qual os átomos podem desviar-se a qualquer momento do tempo e em qualquer ponto do espaço num intervalo mínimo da linha reta e, assim, encontrar outros átomos.

A teoria do clinámen não foi introduzida só por razões físicas, mas também e sobretudo por razões éticas. Com efeito, no sistema do antigo atomismo tudo ocorre por necessidade: o fado e o destino são soberanos absolutos; mas, num mundo no qual predomina o destino, não há lugar para a liberdade humana e, em conseqüência, não há lugar para uma vida moral tal como Epicuro a concebe e, portanto, também não há lugar para uma vida de sábio. Eis pois o que Epicuro escreve, opondo-se à necessidade dominante no sis­tema dos antigos atomistas: “Na verdade, seria melhor acreditar nos mitos sobre os deuses do que tomar-se escravo do fado que os físicos pregavam: aquele mito, com efeito, oferece uma esperança, com a possibilidade de aplacar os deuses com honras, enquanto no fado existe apenas uma necessidade implacável.”

Como os antigos já observavam, a “queda” dos átomos contra­diz as premissas do sistema, porque é gerada sem causa no “não- ser”; o que é tanto mais grave quando se sabe que Epicuro repisa energicamente que “do nada, nada procede”.

Assim Epicuro, para introduzir o “clinámen” contradiz o princípio eleático que, como vimos, está na base da sua física; e, para abrigar-se da necessidade, do fado e do destino, lança o cosmos à mercê do fortuito. Com efeito, o “clinámen” que não está vincu­lado às leis nem às normas da sorte, não é certamente “liberdade”, porque lhes são estranhas qualquer finalidade e qualquer inteligência: logo, ele é apenas mera casualidade. A liberdade não pode ser buscada e encontrada na esfera do físico e do material, mas somente na esfera superior, do espiritual. Por outro lado, como dizíamos, exatamente estas aporias estão entre as coisas que melhor nos ajudam a compreender a complexidade do pensamento de Epicuro e sua verdadeira estatura. Dos infinitos princípios atômicos derivam infinitos mundos. Alguns são iguais ou análogos ao nosso, outros muito diversos. E pois de se notar que todos esses infinitos mundos nascem e se dissolvem, alguns mais rapida­mente, outros mais lentamente, na duração do tempo. Se bem que os mundos não são apenas infinitos na infinitude do espaço num dado momento do tempo, mas também são infinitos na infinita sucessão temporal. E, embora em cada instante existam mundos que nascem e mundos que morrem, Epicuro bem pode afirmar que “o todo não muda”. Com efeito, não só os elementos constitutivos do universo permanecem perenemente como são, mas também todas as suas possíveis combinações permanecem sempre atuan­tes, exatamente por causa da infinitude do universo, que dá sempre lugar à concretização de todas as possibilidades.

Na raiz dessa constituição de infinitos universos não estão, pois, nenhuma Inteligência, nenhum projeto e nenhuma finali­dade — e sequer está a necessidade —, mas, como vimos, está o clinámen e, logo, o casual e o fortuito. E Epicuro e não Demócrito o filósofo que verdadeiramente “coloca o mundo ao caso”.

A alma, como todas as outras coisas, é um agregado de átomos. Agregado formado em parte por átomos ígneos, aeriformes e ventosos, que constituem a parte irracional e a lógica da alma, e em parte por átomos que são “diversos” dos outros e que não têm um nome específico, constituindo a parte racional. Portanto, como todos os outros agregados, a alma não é eterna, mas mortal. Essa é uma conseqüência que decorre necessariamente das premissas materialistas do sistema.

Epicuro não nutre nenhuma dúvida sobre a existência dos deuses. Entretanto, nega que eles se ocupem com os homens ou com o mundo. Vivem em bem-aventurança nos “intermundos”, ou seja, nos espaços existentes entre mundo e mundo; são numerosíssimos, falam uma língua semelhante à grega (a língua dos sábios) e transcorrem a vida na alegria, alimentada por sua sabedoria e por sua própria companhia. Epicuro chegava a apresentar argumentos para demonstrar a existência dos deuses: 1) temos deles vim conhecimento evidente e, conseqüentemente, incontestável; 2) tal conhecimento é possuído não só por alguns, mas por todos os homens de todos os tempos e lugares; 3) o conhecimento que temos deles, assim como nossos outros conhecimentos, não pode ser produzido senão por “simulacros” ou “eflúvios” que provêm deles, sendo, em conseqüência, um conhecimento objetivo.

É muito importante destacar o fato de que, da mesma forma que sublinha a “diversidade” dos átomos que constituem a alma racional em relação a todos os outros átomos. Epicuro também admite que a conformação dos deuses “não é corpo, mas ‘quase corpo’, não é alma, mas ‘quase alma’ ”.

Seria o caso de destacar que esse “quase” arruína todo o raciocínio filosófico e põe irreparavelmente a nu a insuficiência do materialismo atomístico. Como todas as outras coisas, os deuses devem ser constituídos por átomos, mas todo composto atômico é suscetível de dissolução, enquanto que os deuses são imortais. Pois bem, a afirmação de que o composto atômico que constitui os deuses, diversamente daquele que constitui todas as outras coisas, não se dissolve porque as suas perdas (sofridas com o contínuo fluxo dos átomos que formam os simulacros) são continuamente pre­enchidas, nada mais faz do que acentuar o problema. Com efeito, não há modo de explicar a razão do estatuto privilegiado desses compostos. E, então, a Epicuro só resta a aporética afirmação do “quase-corpo”, que, na realidade, revela inexoravelmente a inca­pacidade estrutural do atomismo de explicar os deuses, bem como de explicar a unidade da consciência que existe em nós, da mesma forma que o clinámen se revela estruturalmente insuficiente para explicar a liberdade.