Melisso de Samos e a sistematização do eleatismo

Melisso nasceu em Samos entre fins do século VI e os primeiros anos do século V a.C. Foi capacitado homem do mar e hábil político. Em 442 a.C., nomeado estratego por seus concida­dãos, derrotou a frota de Péricles. Escreveu um livro Sobre a natureza ou sobre o ser, do qual chegaram até nós alguns fragmentos.

Com uma prosa clara e procedendo com rigor dedutivo, Melisso sistematizou a doutrina eleática, ao mesmo tempo em que a corrigiu em alguns pontos. Em primeiro lugar, afirmou que o ser deve ser “infinito” (e não finito, como dizia Parmênides), porque não tem limites temporais nem espaciais e também porque, se fosse finito, deveria se limitar com um vazio e, portanto, com um não-ser, o que é impossível. Enquanto infinito, o ser também é necessaria­mente imo: “com efeito, se fossem dois, não poderiam ser infinitos, pois um deveria ter seu limite no outro”. Ademais, Melisso quali­ficou esse uno-infinito como “incorpóreo”, não no sentido de que é imaterial, mas de que é privado de qualquer figura que determine os corpos, não podendo, portanto, ter nem mesmo a figura perfeita da esfera, como queria Parmênides. (O conceito de incorpóreo no sentido de imaterial só iria nascer com Platão.)

O segundo ponto em que Melisso corrigiu Parmênides consis­tiu na total eliminação do campo da opinião, com um raciocínio de notável agudeza especulativa, a) As múltiplas coisas que os senti­dos pareceriam atestar existiriam verdadeiramente e o nosso conhecimento sensível seria veraz só com uma condição: que cada uma dessas coisas permanecesse sempre tal como nos apareceu da primeira vez, ou seja, com a condição de que cada uma dessas coisas permanecesse sempre idêntica e imutável como o Ser-Uno. b) No entanto, com base em nosso próprio contíecimento empírico, ao contrário, constatamos que as múltiplas coisas que são objeto de percepção sensível nunca permanecem idênticas, mas sim mudam, se alteram, corrompem-se continuamente, precisamente ao con­trário do que exigiria o estatuto do ser e da verdade, c) Desse modo, há contradição entre aquilo que a razão reconhece como condição absoluta do ser e da verdade, por um lado, e aquilo que os sentidos e a experiência atestam, por outro, d) A contradição é eliminada por Melisso com a firme negação da validade dos sentidos e daquilo que os sentidos proclamam (porque, em substância, os sentidos pro­clamam o não-ser), em total benefício daquilo que é proclamado pela razão, e) Assim, a única realidade é o Ser-Uno: o hipotético múltiplo só poderia existir se pudesse ser como o Ser-Uno, como ele diz expressamente: “Se os muitos existissem, cada qual deles deveria ser como é o Uno.”

Assim, o eleatismo se concluiu com a afirmação de um Ser eterno, infinito, uno, igual, imutável, imóvel, incorpóreo (em sen­tido impreciso) e com a explícita e categórica negação do múltiplo, negando, portanto, o direito dos fenômenos a pretenderem um reconhecimento veraz. Está claro que só um ser privilegiado (Deus) poderia ser como o eleatismo exige, mas não todo ser.

Aristóteles censurou os eleatas por beirarem à loucura, ou seja, por terem exaltado a razão, levando-a a um tal estado de embriaguez, a ponto de ela não querer entender ou reconhecer nada além de si mesma e de sua lei. Isso é, sem dúvida, verdadeiro. Mas também é verdadeiro que o maior esforço da especulação posterior, dos pluralistas a Platão e ao próprio Aristóteles, iria consistir exatamente em procurar corrigir essa “embriaguez” ou “loucura” da razão, procurando reconhecer à razão as suas razões, mas ao mesmo tempo procurando reconhecer também à experiência as suas próprias razões. Em suma, tratava-se de salvar o princípio de Parmênides, mas, ao mesmo tempo, de salvar também os fenô­menos.