Os estudiosos concordam em que, para se poder compreender a filosofia de um povo e de uma civilização, é necessário fazer referência: 1) à arte; 2) à religião; 3) às condições sociopolíticas desse povo. 1) Com efeito, a grande arte, de modo mítico e fantástico, ou seja, mediante a intuição e a imaginação, tende a alcançar objetivos que também são próprios da filosofia. 2) Analogamente, por meio de representações não conceituais e por meio da fé, a religião tende a alcançar certos objetivos que a filosofia procura atingir com os conceitos e com a razão (Hegel faria da arte, da religião e da filosofia as três categorias do Espírito absoluto). 3) Não menos importantes (e hoje se insiste muito nesse ponto) são as condições socioeconômicas e políticas, que frequentemente condicionam o nascimento de determinadas ideias e que, particularmente no mundo grego, criando as primeiras formas de liberdade institucionalizada e de democracia, precisamente tomaram possível o nascimento da filosofia, que se alimenta essencialmente da liberdade.
Comecemos pelo primeiro ponto.
Antes do nascimento da filosofia, os poetas tinham imensa importância na educação e na formação espiritual do homem entre os gregos, muito mais do que tiveram entre outros povos. O helenismo inicial buscou alimento espiritual predominantemente nos poemas homéricos, ou seja, na Ilíada e na Odisséia (que, como se sabe, exerceram nos gregos uma influência análoga à que a Bíblia exerceu entre os hebreus, não havendo textos sacros na Grécia), em Hesíodo e nos poetas gnômicos dos séculos VII e VI a.C.
Ora, os poemas homéricos apresentam algumas peculiaridades que os diferenciam de outros poemas que se encontram na origem de outros povos e suas civilizacões, contendo já algumas das características do espírito grego que se mostrariam essenciais para a criação da filosofia.
a) Os estudiosos observaram que, embora ricos em imaginação, situações e acontecimentos fantásticos, os poemas homéricos só raramente caem na descrição do monstruoso e do disforme (como, ao contrário, ocorre frequentemente nas manifestações artísticas dos povos primitivos). Isso significa que a imaginação homérica já se estrutura com base em um sentido de harmonia, de proporção, de limite e de medida, coisas que a filosofia elevaria inclusive à categoria de princípios ontológicos, como poderemos ver.
b) Também se notou que, em Homero, a arte da motivação chega a ser uma verdadeira constante. O poeta não se limita a narrar uma série de fatos, mas também pesquisa suas causas e suas razões (ainda que ao nível mítico-fantástico). Em Homero, a ação “não se estende como uma fraca sucessão temporal: o que vale para ela em cada ponto é o princípio da razão suficiente e cada acontecimento recebe uma rigorosa motivação psicológica” (W. Jaeger). E esse modo poético de ver as razões das coisas é que prepara aquela mentalidade que, em filosofia, levará à busca da “causa” e do “princípio”, do “por que” último das coisas.
c) Uma outra característica do epos homérico é a de procurar apresentar a realidade em sua inteireza, ainda que de forma mítica: deuses e homens, céu e terra, guerra e paz, bem e mal, alegria e dor, a totalidade dos valores que regem a vida do homem (basta pensar, por exemplo, no escudo de Aquiles que, emblematicamente, representava “todas as coisas”). Escreve W. Jaeger: “A realidade apresentada em sua totalidade: o pensamento filosófico a apresenta em forma racional, ao passo que a épica a apresenta em forma mítica. O tema clássico da filosofia grega — qual é a ‘posição do homem do universo’ — também está presente em Homero a cada momento.”
Para os gregos, também foi muito importante Hesíodo com sua Teogonia, que traça uma síntese de todo o material até então existente sobre o tema. A Teogonia de Hesíodo narra o nascimento de todos os deuses. E, como muitos deuses coincidem com partes do universo e com fenômenos do cosmos, a teogonia toma-se também cosmogonia, ou seja, explicação mítico-poética e fantástica da gênese do universo e dos fenômenos cósmicos, a partir do Caos original, que foi o primeiro a se gerar. Esse poema aplainou o caminho para a posterior cosmologia filosófica, que, ao invés de usar a fantasia, buscaria com a razão o “princípio primeiro” do qual tudo se gerou.
O mesmo Hesíodo, com seu outro poema As obras e os dias, mas sobretudo os poetas posteriores, imprimiram na mentalidade grega alguns princípios que seriam de grande importância para a constituição da ética filosófica e do pensamento filosófico antigo em geral. A justiça é exaltada como valor supremo: “Dá ouvidos à justiça e esquece completamente a prepotência”, disse Hesíodo; “Na justiça já estão compreendidas todas as virtudes”, afirmou Focílides; “Sem ceder daqui e dali, andarei pelo reto caminho, porque devo pensar somente coisas justas”, escrevia Teógnis; "... sejas justo, não há nada melhor”, ainda ele. A ideia de justiça está no centro da obra de Sólon. E em muitos filósofos, especialmente em Platão, a justiça se tomaria inclusive um conceito ontológico, além de ético e político.
Os poetas líricos também fixaram de modo estável um outro conceito: a noção de limite, ou seja, a ideia de nem muito nem pouco, isto é, o conceito da justa medida, que constitui a conotação mais peculiar do espírito grego. “Jubila-te com as alegrias e sofre com os males, mas não em demasia”, disse Arquíloco. “Sem zelo demais: o melhor está no meio; e, ficando no meio, alcançarás a virtude”, afirmou Teógnis. “Nada em excesso”, escrevia Sólon. “A medida é uma das melhores coisas”, ecoa uma das sentenças dos Sete Sábios, que recapitulam toda a sabedoria grega, cantada especialmente pelos poetas gnômicos. E o conceito de “medida” constituiria o centro do pensamento filosófico clássico.
Recordemos uma última sentença ainda, atribuída a um dos antigos sábios e inscrita no portal do templo do oráculo de Delfos, consagrado a Apoio: “Conhece-te a ti mesmo.” Essa sentença, muito famosa entre os gregos, tomar-se-ia inclusive não apenas o mote do pensamento de Sócrates, mas também o princípio basilar do saber filosófico grego até os últimos neoplatônicos.